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10 de dezembro de 2013

Os invisíveis



 


Diálogo entre duas pessoas sem-abrigo em O cultivo de flores de plástico:

Senhora de fato Realmente. As pessoas que abrem a janela e vêem que a vida é colorida e bela é porque não nos vêem. Não existimos, pois não?

Ilustração de Angela Muss

Lili Somos pessoas que são cactos e ninguém quer chegar perto de nós com medo de se picar, pois, pois, somos sozinhos como os desertos, mas então. Cheios de céu aberto, pessoas cheias de ar livre. É assim. Há muitas portas no mundo.


Afonso Cruz 


9 de dezembro de 2013

Chave-coração

Voz de uma sem-abrigo na peça O cultivo de flores de plástico, de Afonso Cruz:

Lili (...) O meu pai, quando a gente se portava bem, dava-nos um doce e dizia coisas certas, pois, pois. Ele sabia tudo. Nunca mais ouvi uma pessoa que soubesse as coisas certas. Devagar. Quando alguém lhe dizia que não era assim. ele insistia: é tal. E as pessoas calavam-se, porque ele tinha óculos e barba e sabia as coisas certas. Depois morreu de distância.

Ilustração de Maki Horanai

(...) Quando vim para a rua, comecei a lembrar-me dele e ele já não está morto, mesmo que esteja muito longe, num lugar qualquer que não sei onde fica. Tenho a chave da casa dele.

7 de dezembro de 2013

Partida e chegada das estações

Ilustrração de Noumeda Carbone


Em silêncio o rochedo

vê chegar e partir


as estações



Tolentino Mendonça, in A papoila e o monge, Assírio&Alvim, 2013, p. 29

5 de dezembro de 2013

A perversão de Narciso

Ilustração de Sophie Leta



Decidira que o amor fazia parte da vida,
ao contrário do que pensara. Olhava
para o espelho e recusava o que via,
correndo para a rua em busca de outros
rostos mais belos: os da jovem que passou
à sua frente e o olhou de relance, inquieta
ao adivinhar o seu desejo; ou o dessa que
alisava os cabelos com as mãos, como se
estivesse a acariciar-se, e os seus olhos
perdiam-se na fronteira de um sonho
acordado. Queria dizer-lhes que as amava,
e que deixara para trás de si a sua imagem,
e a obsessão de se ver outro para se possuir até
à última esfera da loucura. E elas olhavam-no,
pedindo-lhe que se aproximasse. Mas
ele continuava parado como se nem sequer
as visse. Então, cansadas de esperar, partiam,
deixando-o entregue à solidão, e
ao inútil desejo de si próprio.


                          
                                 Nuno Júdice, in Navegação de acaso, D. Quixote, 2013, p. 33

4 de dezembro de 2013

Pequenas memórias

Ilustração de Madalena Matoso

Às vezes pergunto-me se certas recordações são realmente minhas, se não serão mais do que lembranças alheias de episódios de que eu tivesse sido actor inconsciente e dos quais só mais tarde vim a ter conhecimento por me terem sido narrados por pessoas que neles houvessem estado presentes, se é que não falariam, também elas, por terem ouvido contar a outras pessoas. 

Ilustração de Madalena Matoso

Não é esse o caso daquela escolinha particular, num quarto ou quinto andar da Rua Morais Soares, onde, antes de termos ido viver para a Rua dos Cavaleiros, eu comecei a aprender as primeiras letras. Sentado numa cadeirinha baixa, desenhava-as lenta e aplicadamente na pedra, que era o nome que então se dava à ardósia, palavra demasiado pretensiosa para sair com naturalidade da boca de uma criança e que talvez nem sequer conhecesse ainda. É uma recordação própria, pessoal, nítida como um quadro, a que não falta a sacola em que acomodava as minhas coisas, de serapilheira castanha, com um barbante para levar a tiracolo. Escrevia-se na ardósia com um lápis de lousa que se vendia em duas qualidades nas papelarias, uma, a mais barata, dura como a pedra em que se escrevia, ao passo que a outra, mais cara, era branda, macia, e chamávamos-lhe «de leite» por causa da sua cor, um cinzento-claro, tirando a leitoso, precisamente. Só depois de ter entrado no ensino oficial, e não foi nos primeiros meses, é que os meus dedos puderam, finalmente, tocar essa pequena maravilha das técnicas de escrita mais actualizadas.

Ilustração de Csil Cb
Não sei como o perceberão as crianças de agora, mas, naquelas épocas remotas, para as infâncias que fomos, o tempo aparecia-nos como feito de uma espécie particular de horas, todas lentas, arrastadas, intermináveis. Tiveram de passar alguns anos para que começássemos a compreender, já sem remédio, que cada uma tinha apenas sessenta minutos, e, mais tarde ainda, teríamos a certeza de que todos estes, sem excepção, acabavam ao fim de sessenta segundos...


José Saramago, in As pequenas memórias, Caminho, 2006, pp. 63-65

3 de dezembro de 2013

Balão ou mundo?


Ilustração de Anna Lisk
Um ou outro domingo, pela tarde, as mulheres desciam à Baixa para ver as montras. Geralmente iam por seu pé, alguma vez tomariam o carro eléctrico, que era o pior que me podia suceder nessa idade, porque não tardava a enjoar com o cheiro lá de dentro, uma atmosfera requentada, quase fétida, que me revolvia o estômago e em poucos minutos me punha a vomitar. Neste particular fui uma criança delicada. Com a passagem do tempo esta intolerância olfactiva (não sei que outro nome lhe poderei dar) foi diminuindo, mas o certo é que, durante anos, bastava-me entrar num carro eléctrico para sentir a cabeça a andar à roda. (...) Não me lembro das montras, nem é para falar delas que estou aqui, assuntos mais sérios me ocupam neste momento. Junto a uma das portas dos Armazéns Grandella havia um homem a vender balões, e, fosse por tê-lo eu pedido (do que duvido muito, porque se quem espera que se lhe dê é que se arrisca a pedir), fosse porque minha mãe tivesse querido, excepcionalmente, fazer-me um carinho público, um daqueles balões passou às minhas mãos. Não me lembro se ele era verde ou vermelho, amarelo ou azul, ou branco simplesmente. O que depois se passou iria apagar para sempre da minha memória a cor que deveria ter-me ficado pegada aos olhos para sempre, uma vez que aquele era nada mais nada menos que o meu primeiro balão em todos os seis ou sete anos que levava de vida.


Ilustração de Csil Cb


Íamos nós no Rossio, já de regresso a casa, eu impante como se conduzisse pelos ares, atado a um cordel, o mundo inteiro, quando, de repente, ouvi que alguém se ria nas minhas costas. Olhei e vi. O balão esvaziara-se, tinha vindo a arrastá-lo pelo chão sem me dar conta, era uma coisa suja, enrugada, informe, e dois homens que vinham atrás riam-se e apontavam-me com o dedo, a mim, naquela ocasião o mais ridículo dos espécimes humanos. Nem sequer chorei. Deixei cair o cordel, agarrei-me ao braço da minha mãe como se fosse uma tábua de salvação e continuei a andar. Aquela coisa suja, enrugada e informe era realmente o mundo.

                                          José Saramago, in As pequenas memórias, Caminho, 2006, pp.76-77

2 de dezembro de 2013

A página branca

Ilustração de Ophelia Redpath

Havia uma vez, naquela cidade de província
onde joguei bilhar no intervalo de ver chegarem
e partirem as traineiras, uma jovem mulher
que se sentava na mesa mais triste do café,
e olhava em frente, sem que os seus olhos
mudassem de expressão. Todos os dias era 
assim, e dela só fiquei a saber que ninguém
a conhecia. Na mesa, o mesmo livro com o mesmo
marcador que nunca saía da mesma página,
e que ela nunca abria como se não quisesse saber
como a história acabava. Naquele café, tiraram
o bilhar; naquela cidade já não há traineiras
a chegar e a partir; mas quando olho para
a mesa do canto onde a jovem mulher se
sentava, penso sempre na história que ficou
a meio, sem que eu saiba como acabou.

Nuno Júdice, in Navegação de acaso, D. Quixote, 2013, p. 32 

1 de dezembro de 2013

Não deixes o cansaço instalar-se

Ilustração de Alice Tams

Não deixes o cansaço instalar-se 
Em vez disso
Silenciosamente
Como a um pássaro
Estende a mão ao milagre.


Hilde Domin  (1912 – 2006)

28 de novembro de 2013

Porta ou sorriso?

Ilustração de Noma Bliss e Jim Bliss

...e Mathias Popa abriu a porta sem abrir um sorriso.


Afonso Cruz, in A Boneca de Kokoschka, Quetzal, 2010, p.80

27 de novembro de 2013

Verdade e mentira

Ilustração de Toni Demuro

Não existe mentira na literatura, na ficção, e, digo-lhe mais, não existe verdade na vida real. Se perceber isto muito bem, perceberá muito mais coisas.

                                                       Afonso Cruz, in A boneca de Kokoschka, Quetzal, 2010, p. 83




25 de novembro de 2013

Poesia rejeitada

Ilustração de Alexandra Semushina

Peguei na minha obra toda, mais de quatro mil páginas A4, e enterrei tudo num terreno baldio perto de casa. Nessa altura vivia no Cairo. Depois de ter enterrado aquilo cresceram umas ervinhas, mesmo onde eu tinha escavado. Fiquei contente porque não tinha crescido nada à volta, só onde enterrei os poemas. Não sei se foi de ter revolvido a terra, ou se foi a Natureza a demonstrar a sua inclinação pela poesia, especialmente pela rejeitada.

Afonso Cruz, in A boneca de Kokoschka, Quetzal, 2010, p. 83

24 de novembro de 2013

O elogio da confiança (1)

Ilustração de Laimonas Šmergelis



Por pátios e jardins silenciosos
se chega ao lugar
da contemplação


Tolentino Mendonça, in A papoila e o monge, Assírio&Alvim, 2013, p. 55

22 de novembro de 2013

Frio

Ilustração de Gobugi Paper

Aquele dia era um casaco aberto ao frio.


Afonso Cruz, in A Boneca de Kokoschka, Quetzal, 2010,p. 75

20 de novembro de 2013

Silêncio e intimidade

Ilustração de Luis Romero


O que por palavras nos está oculto
no silêncio crepita
em intimidade

Tolentino Mendonça, in A papoila e o monge, Assírio&Alvim, 2013, p. 20

19 de novembro de 2013

Silêncio

Ilustração de Luis Romero


Silêncio:
na ravina inacessível
o prado em flor



Tolentino Mendonça, in A papoila e o monge, Assírio&Alvim, 2013, p. 37

18 de novembro de 2013

Silêncio vazio

Ilustração de Luis Romero



O silêncio só raramente é vazio
diz alguma coisa
diz o que não é

Tolentino Mendonça, in A papoila e o monge, Assírio&Alvim, 2013, p. 15

17 de novembro de 2013

Dança no universo

Ilustração de Marie Cardouat

















Estas folhas que estremecem na tarde
não sabem que dançam
à roda do universo


Tolentino Mendonça, in A papoila e o monge, Assírio&Alvim, 2013, p. 159


16 de novembro de 2013

Nuvens

Ilustração de Vladimir Olenberg


No ramo do marmeleiro

descubro nuvens

que não havia visto



Tolentino Mendonça, in A papoila e o monge, Assírio&Alvim, 2013, p. 112

14 de novembro de 2013

O que sabem os relógios?

Ilustração de Georgiana Chitac
Que infelicidade. Os dias esticam e ficam mais longos, o relógio diz que não, mas, com licença, o que sabem os relógios sobre a alma humana? (...)

O tempo demora mais a passar, muito mais, é assim que se sofre. Quando se está feliz, esse mesmo tempo passa a correr, parece que vai atrasado para uma festa, mas, se vê uma lágrima, pára e fica a ver o acidente, dá voltas à nossa desgraça e não anda para a frente como os relógios dizem que ele faz. 


Afonso Cruz, in Para onde vão os guarda-chuvas, Alfaguara, 2013, p.118

13 de novembro de 2013

Nas mãos do oleiro

Ilustração de Cecelia Webber

Nas mãos do oleiro
o universo descobre-se
inacabado



Tolentino Mendonça, in A papoila e o monge, Assírio&Alvim, 2013, p. 53