Ilustração de Vladimir Kryloff |
se formos sombra: os olhos, sombra;
o coração, sombra; a própria luz
do pensamento, exílio e sombra.
Na infância (pois fomos
jovens um dia) atrás dos reposteiros
o invisível vigiava
o nosso sono desperto.
Agora que acordámos
do amarelo e do azul
e do branco e do azul
e do coração e do azul,
como regressaremos
a este mundo?
(O azul não é deste mundo,
nem os olhos são deste mundo)
À nossa porta batem
inúteis as lembranças: sombras.
Cegámos. Os amigos (sombras)
morreram de doenças de velhos,
o enfarte, a solidão, ou só
de morte, e nem
uma réstia de azul iluminou
o seu último olhar.
Se ao menos tivéssemos
envelhecido sem motivo, sem tempo,
desaparecido para dentro
lucidamente, como uma coisa desprendendo-se.
Manuel António Pina, in Poesia, Saudade da Prosa - uma antologia pessoal,
Assírio & Alvim, 2012, 2ª ed., pp. 28-29