Ilustração de Roel Obemio |
Uma vez, na rua, cruzei-me com um apanhador
de conchas. Tinha os olhos
feridos pelo sal, as mãos
abertas pelo ácido das marés, os lábios
gretados
por versos inacabados. Recitou-me fórmulas
do campo;
anunciou-me a verdade de antigas
profecias. Olhei para cima: e o céu
continuava
azul, como se nada se passasse. Mas ele
abriu o cesto das
conchas; e um movimento
de caranguejos mostrou-me o fundo da
existência. Talvez eu estivesse a falar
com um morto; ou as suas palavras me
distraíssem do verdadeiro significado
das coisas."Para que serve a
poesia,
afinal"? E continuou o seu caminho,
para que eu seguisse o meu,
como
se nunca nos tivéssemos encontrado.
Nuno Júdice, in As coisas mais simples, Dom Quixote, 2007, 2ª ed., p. 26
Nuno Júdice, in As coisas mais simples, Dom Quixote, 2007, 2ª ed., p. 26