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10 de novembro de 2013

O valor da migalha

Ilustração de Sonja Dimovska


A papoila e o monge, de José Tolentino Mendonça, é um livro de rara beleza poética e intrinsecamente espiritual. 
Um elogio à confiança, à abertura do olhar interior, à profundidade, à pobreza contemplativa, do não saber, da ignorância que despoja, abre horizontes e alarga a esperança. 
Um convite à valorização do ínfimo, da migalha, do único, do quotidiano que nos assiste. 
Um desafio à descoberta da manifestação divina na revelação e no furtivo; no rumor e no silêncio; no tudo e no nada.

Mª Carla Crespo

  

Interrogar a papoila

Ilustração de Marta Álvarez Miguéns


Podes interrogar a papoila
mas a papoila
nada responde



Tolentino Mendonça, 

in A papoila e o monge,

Assírio&Alvim, 2013, p. 28

Adeus

Ilustração de Sasha Ivoilova




Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro 
nada. 
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao
outro; 
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes 
verdes. 
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um 
aquário, 
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

Eugénio de Andrade, in Os Amantes do dinheiro