Ilustração de Catherine Samuel |
Deixe que o conduzam pela
berma do passeio, sem
tirar os pés dessa faixa
mais larga entre a calçada e o alcatrão.
Faça com que os carros se
desviem, à sua passagem, e
não tire os olhos do chão,
como se andasse à procura
de moedas. Sim, à direita
fica o muro do jardim, a igreja
lá para trás, talvez seja
uma catedral, com os seus vitrais.
Mais à frente pode estar um
museu, mas não se
preocupe e ande sempre em
frente, seguindo essa linha de
separação entre o passeio e
a estrada. Por vezes, sentirá a sombra
de uma árvore rara, cujas
folhas são únicas no país.
Talvez sinta o seu perfume
que, dizem os botânicos, enfurece
as fêmeas e desperta os
machos. Mas nem isso o deverá
desviar. À esquerda, uma
bela paisagem: o rio a transformar-se
em mar. Que importa se o
chão continua ao longo da estrada,
e já tem carros a apitar
para que se desvie, agora que vai
sair da cidade. Mas o seu
destino ainda está longe, e
quando a tarde começa a cair
não sabe se o irá alcançar.
Se houvesse um banco, poderia
sentar-se; e ali está um,
ao lado do caminho, mas
passou por ele e nem o viu. É
possível, diria o vagabundo
que o viu passar, que fosse
esse o seu destino.
Sentar-se-ia ao seu lado, pedir-lhe-ia
lume para o cigarro, sem se
lembrar que há muito deixou
de fumar, e falar-lhe-ia na
sua língua, que ele não
percebe, revelando o que há
muito procura, enquanto a noite
cai e o caminho de volta se
fecha.
Nuno Júdice, in
Fórmulas de uma luz inexplicável