Ilustração de Alexander Mikhnushev |
Subitamente, no meio da confusão da
livralhada, descubro o álbum da tia Dulce. Estou cansado e sento-me. É um álbum
velho, pesado como o tempo. A capa arredonda-se em almofada, com uma dama
antiga, em tons verdes e brancos, segurando no regaço um leque fechado. (…)
Retrato de grupo há só um. Mas as figuras não estão centradas para um ponto
único, não nos olham nem se olham (…). Cerro os olhos e sei de novo que toda
esta gente morreu. Mas o que mais me perturba é pensar que o rasto dessa gente
está suspenso de mim. Porque eu tenho ainda uma pequena notícia da sua vida, o
eco apagado do que foi a massa complexa do seu ser e sentir. Tia Dulce
contou-me. (…) Mas de muitos retratos já nada sei. São esses que eu fito com
mais angústia. Têm olhos espantados ou risonhos ou sérios. Que medos, que
sonhos, que virtudes lhes inventaram a vida em eternidade? Mas vós estais
mortos e ninguém vos julga e ninguém vos ouve. Que sei, porém, de vós outros,
meus amigos? (…) Frágeis fios destas imagens amarelecidas, convergindo para
mim, para a minha memória cansada, presos do futuro por uma breve referência,
uma nota, uma etiqueta. Terei um filho talvez. Eu lhe contarei o que sei de
vós. Mas ele o esquecerá talvez, ou o filho do meu filho, ou o filho do filho
do meu filho. Então aparecereis num recanto do sótão, absurdos, incríveis,
inquietantes (…). Mas agora ainda estais vivos, ainda alguém, eu, aqui,
silencioso nesta casa solitária, vos liga à vida que freme para lá destes muros
na Primavera anunciada, nas primeiras andorinhas que me buscam o beiral, na
planície aberta de esperança. Sede vivos neste instante infinitesimal em que
vos fito e vos sei um nada do vosso convulso e rico e inverosímil milagre.
Vergílio
Ferreira, Aparição, Ed. Bertrand,
Cap. XVII