Ilustração de Ford Smith |
Fecho o álbum, acendo um cigarro. Para
lá da janela atinjo a linha azul do horizonte que se desvanece na tarde. Penso,
penso. Não, não penso, procuro. Outra vez, outra vez. Não, não quero “saber”,
sei já há tanto tempo…Mas nenhum saber conserva a força que estala no que é
aparição. Porque o escrevo de novo? A verdade é que nada mais me importa. E
todavia, um estranho absurdo me ameaça: quero saber, ter, e uma aparição não se
tem, porque não seria aparecer, seria estar, seria petrificar-se. Queria que a
evidência me ficasse fulminante, aguda, com a sua sufocação, e aí, na angústia,
eu criasse a minha vida, a reformasse. Mas uma reforma, uma regulamentação é já
do lado de fora. Quem é fiel a uma certeza e a pode ver quando lhe apetece? (…)
Não escrevo para ninguém, talvez, talvez: e escreverei sequer para mim? O que
me arrasta ao longo destas noites (…), o que me excita a escrever é o desejo de
me esclarecer na posse disto que conto, o desejo de perseguir o alarme que me
violentou e ver-me através dele e vê-lo de novo em mim, revelá-lo na própria
posse, que é recuperá-lo pela evidência da arte. Escrevo para ser, escrevo para
segurar nas minhas mãos inábeis o que fulgurou e morreu.
Vergílio Ferreira, Aparição,
Ed. Bertrand, Cap. XVII