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23 de maio de 2015

Cinco destinos

Ilustração de 度薇年 

Cinco destinos guiam o homem: a sua natureza espiritual, o seu corpo, o seu povo, a sua pátria, a língua: elevar-se acima dos cinco é atingir a condição divina.


  Hugo von Hofmannsthal, in Livro dos amigos, Assírio&Alvim, 2002, p.61

22 de maio de 2015

Saber é pouco


Ilustração de 孟楠楠


Saber é pouco; 

saber na relação exacta é muito, 

saber no ponto exacto é tudo.


                         Hugo von Hofmannsthal, in Livro dos amigos, Assírio&Alvim, 2002, p. 64

21 de maio de 2015

Os melhores momentos da vida

Ilustração de Luís Alves


Os melhores momentos da vida são aqueles em que o indivíduo compreende a sua situação na vida; esse sentimento pode intensificar-se até ao mágico, e isso sem nada que seja egoísta, sem qualquer ambição. 


Hugo von Hofmannsthal, in Livro dos amigos, Assírio&Alvim, 2002, p. 72

20 de maio de 2015

O recheio da existência humana

Ilustração de Sernur Isik

De meros vazios se constrói o recheio da existência humana.


                                          Hugo von Hofmannsthal, in Livro dos amigos, Assírio&Alvim, 2002, p. 72



19 de maio de 2015

Sonho ou poesia?

Ilustração de Sernur Isik


Ao dizer algo de condensado sobre a realidade, aproximamo-nos já do sonho, ou antes, da poesia.

                               
                                                    Hugo von Hofmannsthal, in Livro dos amigos, Assírio&Alvim, 2002, p. 72


18 de maio de 2015

Criatividade

Ilustração de Cinta Vidal


Não é conhecer muitas coisas mas sim pôr muitas coisas em contacto umas com as outras que constitui um primeiro grau de criatividade.

Hugo von Hofmannsthal, in Livro dos amigos, Assírio&Alvim, 2002, p. 72

A amada nas altas montanhas


Ilustração de Bella Sinclair

a amada nas altas montanhas
o amador ao rés das águas




Ilustração de Chichi Huang



Herberto Helder, in Poemas canhotos, Porto Editora, 20015, p. 7


17 de maio de 2015

Onde esconder a profundeza?

Ilustração de Laimonas Smergelis

É preciso esconder a profundeza. Onde? Na superfície.


Hugo von Hofmannsthal, in Livro dos amigos, Assírio&Alvim, 2002, p. 74

14 de maio de 2015

Ser actor e ser famoso

Quando os mais novos vêm dizer-me: "Eu quero ser actor porque quero ser famoso", acho que há qualquer coisa que já está ali ao contrário de tudo e, portanto, aquela pessoa não me interessa nada. 

Ilustração de Dani Padrón

"Então por que é que queres ser actor?", podem perguntar vocês. Eu quero ser actor porque me permite brincar, quero dizer, permite-me a construção de um terreno de relação com os outros que tem regras diferentes, que eu invento naquela altura e com aquelas pessoas.


Luís Miguel Cintra, in Cinco conversas em Almada
O sentido dos mestres, 2015, 1ª ed., pp. 59-60

12 de maio de 2015

Casa da Cerca

Ilustração de Elena Odriozola

Julho chegou a Almada como quase sempre chega: soalheiro e promissor. Na Casa da Cerca, onde as tardes prometem mais do que noutro sítio qualquer, há quem deambule sozinho no pátio da entrada e quem espaireça em grupo no terraço das traseiras. Dali, a vista sobre Lisboa é desafogada e a brisa sopra com mais força. Os olhos encontram descanso no azul do Tejo e na luz da capital, há séculos elogiada. 


Ângela Paredlha, "Para uma vida mais verdadeira", in Luís Miguel Cintra, Cinco conversas em Almada
O sentido dos mestres, 2015, 1ª ed., p. 11

11 de maio de 2015

Dizes-me: tu és mais alguma coisa

Dizes-me: tu és mais alguma coisa
Que uma pedra ou uma planta.
Dizes-me: sentes, pensas e sabes
Que pensas e sentes.
Então as pedras escrevem versos?
Então as plantas têm ideias sobre o mundo?

Ilustrações de Dima Dmitriev


Sim: há diferença.
Mas não é a diferença que encontras;
Porque o ter consciência não me obriga a ter teorias sobre as coisas:
Só me obriga a ser consciente.




Se sou mais que uma pedra ou uma planta? Não sei.
Sou diferente. Não sei o que é mais ou menos.





Ter consciência é mais que ter cor?
Pode ser e pode não ser.
Sei que é diferente apenas.
Ninguém pode provar que é mais que só diferente.




Sei que a pedra é a real, e que a planta existe.
Sei isto porque elas existem.
Sei isto porque os meus sentidos mo mostram.
Sei que sou real também.
Sei isto porque os meus sentidos mo mostram.
Embora com menos clareza que me mostram a pedra e a planta.
Não sei mais nada.



Sim, escrevo versos, e a pedra não escreve versos.
Sim, faço ideias sobre o mundo, e a planta nenhumas.
Mas é que as pedras não são poetas, são pedras;
E as plantas são plantas só, e não pensadores.
Tanto posso dizer que sou superior a elas por isto,
Como que sou inferior.
Mas não digo isso: digo da pedra, «é uma pedra»,
Digo da planta, «é uma planta»,
Digo de mim «sou eu».
E não digo mais nada. Que mais há a dizer?




Alberto Caeiro, in Eu só penso no sol - Poesia de Alberto Caeiro, Alma azul, pp. 13-14

10 de maio de 2015

Muitas vezes Deus prefere


Ilustração de Aurélie Blanz


Muitas vezes Deus prefere

entrar em nossa casa

quando não estamos



Tolentino Mendonça, in A papoila e o monge, Assírio&Alvim, 2013, p. 40

6 de maio de 2015

Vasco Santana e O Fado do Estudante

Ilustração de Ana Moreira
A figura de Vasco Santana, apresentada na primeira pessoa como, de resto, todas as biografias da coleção Chamo-me... da Didáctica Editora, torna esta obra juvenil muito divertida, pois estabelece-se uma verdadeira empatia com o protagonista (narrador autodiegético), apesar de não existir exigência literária...

Porém, é fundamental para os mais jovens conhecerem o ídolo português de A Canção de Lisboa, O Pai Tirano, O Pátio das Cantigas, da comédia e do teatro portugueses em geral e inclui O Fado do Estudante, aqui reproduzido em várias interpretações musicais.






  

4 de maio de 2015

Eterna juventude

Ilustração de Maria Lavezzi

A voz envelhece muito devagar, é por isso que as estrelas da rádio se aposentam tão tarde.

                     
                                                                 Juan José Millás, in A mulher louca, Planeta, 2014, 1ª ed., p.75 

3 de maio de 2015

A mãe não gostou

Ilustração de Rozalek




Pus um chapéu em cima da flor por causa do sol.

A minha mãe não gostou.


Afonso Cruz, in O livro do ano,  Alfaguara, 2013

Declaração


               Ilustração de Rima Koussa


Eu, abaixo assinado, não sei o que
hei-de declarar.

Mas posso declarar que foi ontem que eu,
abaixo-assinado, declarei que era hoje que
iria declarar o que tinha de declarar.



Ilustração de Rima Koussa



















E declaro hoje que não sei o que declarar no dia 
de hoje enquanto amanhã não chega.

Eu abaixo-assinado declaro que
amanhã terei de declarar tudo o que tenho
de declarar.

Ontem teria declarado e subscrito
o que tinha de declarar.

E amanhã também iria declarar
todas as declarações do mundo se, quando
amanhã chegar, não descobrisse que amanhã
é hoje.

Por isso é que eu, abaixo-assinado,
declaro que não sei declarar hoje, que é o amanhã
de ontem, tudo o que tenho de declarar.

E eu, abaixo-assinado, declaro solenemente
por minha honra que só não declaro nada hoje porque
hoje é o amanhã de ontem,
e também não vou declarar nada amanhã porque
amanhã é o hoje em que irei deixar para depois
de amanhã o que tenho de declarar.


Ilustração de Rima Koussa













E cumpra-se esta declaração que vou datar
de amanhã, sabendo que só a poderei escrever
depois de amanhã, quando ontem for o amanhã
em que a vou adiar para ontem.


Nuno Júdice, in A Matéria do Poema, D. Quixote, 2008, 1ª ed., pp. 49-50

2 de maio de 2015

Frases mentirosas?

- Você é escritor, verdade?
- Sim - diz Millás intimidado.

- Saberia então dizer-me por que a frase "sou uma frase incorrecta" é correcta, enquanto "sou um frase correcto" é incorrecta?

Ilustração de Angela Marchetti
(...)
- Bom, "sou uma frase incorrecta" é correcta, formalmente falando, porque todos os seus elementos concordam. Outra coisa é que minta acerca de si mesma. Em "sou um frase correcto", ao contrário, há problemas de concordância. "Um" deveria ser "uma" e "correcto" deveria ser "correcta".

- Mas também mente - diz Julia.
- Também mente - aceita Millás.


                                          Juan José Millás, in A mulher louca, Planeta, 2014, 1ª ed., pp. 82-83 

29 de abril de 2015

A roupa dos substantivos

Ilustração de Rossana Bossù

...adjectivos são acrescentos ou adornos que pomos ao substantivo para dizer algo dele. O adjectivo é para o substantivo o que a roupa é para um actor. Como os actores vão a muitas festas, a muitos jantares, muitas entregas de prémios, precisam de muitas camisas, de muitos casacos, muitas saias e calças, muitos sapatos. Subiu-lhes a fama à cabeça e não podem vestir o mesmo traje dois dias seguidos. Há substantivos simples, que vão em corpo, mas a maioria gosta de levar por cima um adjectivo.


Juan José Millás, in A mulher louca, Planeta, 2014, 1ª ed., p. 105

28 de abril de 2015

Consultório de frases

Ilustração de Dainius Šukys
Julia não tinha respostas para a maioria das questões que as frases lhe colocavam, mas elas continuavam a acudir ao seu "consultório" e atendia-as a todas, tentando não decepcioná-las nem decepcionar-se, pois ocupava-se do estudo da gramática com uma seriedade com que nunca antes havia abordado projecto algum. Afortunadamente, muitas apresentavam problemas simples de resolver. A O meu cão está zarolha, por exemplo, doíam-lhe as articulações porque, como Julia advertiu logo em seguida, cão zarolha não concordavam. Explicou à frase que essa falta de concordância acabava por ser como introduzir a peça de um quebra-cabeças num buraco que não lhe correspondesse.

Juan José Millás, in A mulher louca, Planeta, 2014, 1ª ed., p. 21

27 de abril de 2015

Microcirurgia das meias

Após pronunciar estas palavras, Mllás medita uns instantes (...). Quanto à imagem da meia, diz que lhe vem à memória o gesto antigo das mães ao cerzi-las com a ajuda daquele misterioso ovo de madeira que havia em todas as casas. O cerzido era uma arte de costura que consistia em consertar um rompimento de tal modo que não se notasse a reparação. (...) 

Ilustração de Marie Desbons

O cerzido tinha algo de microcirurgia na medida em que era preciso tapar o buraco unindo os fios soltos da rotura como o cirurgião encaixa os capilares desfiados de uma ferida.


Juan José Millás, in A mulher louca, Planeta, 2014, 1ª ed., p. 73

26 de abril de 2015

A psicose e as meias

A verdade, acrescenta Millás, é que nunca chegou a entender, no sentido mais profundo, em que consistia a psicose, que tanto o atraía e perturbava, embora intuísse que se tratava de um buraco aberto na personalidade como uma malha rota numa meia.


Ilustração de Stela Woo

Esse buraco, que era um buraco do eu, devorava tudo o que se acercava das suas bordas num esforço inútil de substituir a ausência de qualidade por toneladas de quantidade.

                                                               Juan José Millás, in A mulher louca, Planeta, 2014, 1ª ed., p. 73



24 de abril de 2015

Uma menina está perdida no seu século à procura do pai


Que século? Que pai? Que menina?
Esta obra de Gonçalo M. Tavares é uma alegoria à cidade da indiferença: à diferença (Hanna, a menina, sofre de trissomia 21) e ao horror.

Ilustração de Paulina Góra (Antosz)


Paradoxalmente, num hotel os quartos não têm números mas nomes: nomes de campos de concentração, não permitindo o esquecimento nem a indiferença face ao holocausto.

Ilustração de Paulina Góra (Antosz)

Marius encontra a menina perdida. Onde a levará? Encontrará ela o pai? Como terminará esta história? 

Ilustração de Paulina Góra (Antosz)

É necessário perdermo-nos e dissolvermo-nos na leitura de Uma menina está perdida no seu século à procura do pai

Mª Carla Crespo

23 de abril de 2015

Pesadelo com livros

Ilustração de Tony Diterlizzi
Outro pesadelo.

Vejo o mesmo grupo de adolescentes, com a idade de Hanna (mas a ela não a vi), com catorze, quinze anos, todos com trissomia 21, a deitarem para o fundo de um poço livros em diferentes línguas. Lembro-me perfeitamente de algumas capas, de alguns nomes esquisitos, até de alguns alfabetos absolutamente impenetráveis. As raparigas (a certa altura pareceram-me todas raparigas, com aquela cara semelhante, com saia verde de um uniforme de colégio), as raparigas mandavam para o poço livros em francês, em italiano, em búlgaro, em russo, em inglês, em alemão - e cada livro que chegava lá a baixo, ao fundo do poço, era recebido com o som de uma água enlameada; e eu - que, estranhamente, estava ali, no meio do grupo, a assistir, sem participar, sem fazer nada, aceitando -, eu, então, debruçado sobre o poço, ali estava espantado, era essa a palavra, a ver cada um dos livros primeiro bater com certa força nos pequenos centímetros que ainda restavam de água e, depois, segundo a segundo, a desaparecerem, pelo menos em parte, engolidos pela lama.


Gonçalo M. Tavares, in Uma menina perdida no seu século à procura do pai, Porto Editora, 2014, 1ª ed.,p. 151

20 de abril de 2015

Contra-natura

Ilustração de Liuyi & Shandan


Sempre que os filhos precedem na morte aqueles que os trouxeram ao mundo, a Natureza exige  longo tempo para repor as suas leis.

                                                      Mário Cláudio, in O Fotógrafo e a Rapariga, D. Quixote, 2014, p. 12

19 de abril de 2015

Dom Barómetro e a gulodice

No armazém havia além de mim, do patrão Vasques, e do senhor Soares, que trabalhava como nosso tradutor, o senhor Moreira, o guarda-livros, o senhor Borges, o caixa, os três rapazes, caixeiros de praça, e o moço de recados. Os três rapazes eram o José, o Sérgio e o Vieira, a quem chamávamos o Alfama por morar a Santo Estêvão, e o moço que tinha a graça de António como eu. De quando em quando apareciam os caixeiros-viajantes, o senhor Tomé e o senhor Ernesto, e tínhamos também o gato, o Aladino, constando que fora o senhor Soares quem lhe pusera o nome. 

(...)
Ilustração de Angelo Barile


Embora teoricamente ocupasse o lugar de chefe do tradutor, o senhor Moreira nunca puxava dos galões com ele, nem aliás com ninguém, e apenas censurava a indiferença que o senhor Soares sentia por tudo quanto fosse comida. “Aquilo é uma tristeza”, desabafava o guarda-livros, “o único petisco que lhe passa pelas goelas é uma canja de galinha, e de longe a longe uma postazinha de pescada cozida.” O tradutor parecia não acusar tais brincadeiras, e só muito raramente se divertia a caçoar com o senhor Moreira, alcunhando-o de Dom Barómetro. 


Ilustração de Jennifer Garant

De facto não existia quem como ele se preocupasse com as condições atmosféricas, não porque isso lhe desse qualquer abalo no tocante aos dias da semana, mas porque temia que o almoço dominical, festejo em que depositava as suas alegrias de glutão, se lhe tornasse impossível, devido ao mau tempo.

                                           Mário Cláudio, in Boa noite, senhor Soares, D. Quixote, 2008, 2ª ed., pp.13-15

18 de abril de 2015

Piquenique

Não sei como lanço a vista por cima do pessoal que ali acampava, a merendar, ou a bater a sesta, e que nada tinha a ver com o que quer que fosse que respeitasse ao senhor Soares, e dou com o sujeito, ou com o que se assemelhou ser ele porque as lentes dos óculos redondos chispavam na luz, em mangas de camisa, e encostado a uma manta que entalara entre entre as costas e o tronco de uma oliveira. Diante do senhor Soares alapava-se um cavalheiro, um tipo que eu não conhecia identificar porque a sombra lhe cobria o rosto, e entre ambos distinguiam-se duas garrafas e um embrulho aberto com o que julguei serem figos.

(...)
Ilustração de Alexander Sokht
Ilustração de Philip Giordano 




O que o acompanhava (...) fora um dia, recordei-me então, ao escritório à procura do amigo, e confiara-me um cartão-de-visita (...) que tinha impresso, "Ricardo Reis", e por baixo "Médico", e ainda, escrito à mão, e a tinta preta, "passou por aqui". 





Mário Cláudio, in Boa noite, senhor Soares, D. Quixote, 2008, 2ª ed., pp. 30-31


14 de abril de 2015

Lisboa, aceder a um amanhã

Ilustração de 度薇年 

Lembro-me então daquela Lisboa de cinquenta e dois anos atrás, vista da Graça, ou de São Pedro de Alcântara. Fixo-me nas artérias da Baixa, traçadas a régua e esquadro, e na multidão que se precipita para o Terreiro do Paço, e que se escoa devagar nos barcos que partem para Cacilhas. Está ainda azul o céu, mas paira sobre a cidade um alarme de acabamento, isto como se se houvesse esgotado a esperança que anima as criaturas, e o direito que lhes cabe a aceder a um amanhã.

                           
                 Mário Cláudio, in Boa noite, senhor Soares, D. Quixote, 2008, 2ª ed., pp.47-48

12 de abril de 2015

O amor não se adia


Ilustração de Clément Lefèvre
Eu tinha começado a ensinar. Era muito nova então. Quase tão nova como as meninas que eu ensinava. E tive um grande desgosto. (...)

Se vos conto este desgosto tão grande, não é para vos entristecer. Mas para vos ajudar a compreender, como só então eu pude compreender, o valor da vida. O amor da vida. O valor de um gesto de amor. O seu «preço», que dinheiro algum consegue comprar. (...)

Numa turma uma aluna faltava há dias. Era a Aurora. Morena, de grandes olhos cheios de doçura. Talvez triste. A Aurora estava doente. Num hospital da cidade, numa enfermaria. Num imenso hospital. (...)

— Vou vê-la no próximo domingo – anunciei às companheiras.(...)

Ilustração de Juanbjuan

Mas o próximo domingo foi cheio de Sol. (...) E eu, a professora, ainda jovem, que gostava do Sol, fui passear. Ver mar? Campos verdes? Flores? Já nem me lembro. E da Aurora me lembraria se a tivesse ido visitar. 

Começava a Primavera. 
Adiei a visita naquele próximo domingo, para outro dia, para outro próximo domingo. 

Ilustração de Sergey Smirnov


Hoje sei que o amor dos outros se não adia.

Aurora esperou-me toda a tarde de domingo, na sua cama branca, de ferro. 

Tinha posto uma fita vermelha a segurar os cabelos escuros. Esperava-me, esperava a minha visita, cuja promessa as companheiras lhe haviam transmitido. (...)

Ilustração de Shiori Matsumoto

— Estou à espera da professora… 

Ilustração de Kelli Murray


No dia seguinte a doença foi mais poderosa que a sua juventude, a sua doçura, a sua esperança. 
A cabeça escura, sem a fita vermelha, adormeceu-lhe profundamente na almofada, talvez incómoda, do hospital. 

Ilustração de Chichi Huang

Sabemos todos já, amigos, que há vida e morte. Também isso temos de aprender. 


Matilde Rosa Araújo "A fita vermelha", in O Sol e o Menino dos Pés Frios, 
Livros Horizonte, 1998, 9ª ed., pp. 25-27

9 de abril de 2015

O guarda-livros sem rrr

O senhor Moreira, um homem muito engraçado que vivia ao pé da Avenida, não conseguia pronunciar os erres, e fazia-nos rir à socapa com aquelas frases que nós, os rapazes, nos não cansávamos de repetir, e de que nunca mais me esqueci. “O peço do meto do pano cu” fora uma dessas suas saídas que usávamos, se nos apetecia um bocado de pagode.

Ilustração de Clelia Nguyen

O guarda-livros andava por regra muito mal vestido, fora sempre um enorme comilão, gastava o ordenado com a esposa, a dona Lalá, a encher a barriga, e não me lembro de segunda-feira em que ele não chegasse com saudades dos petiscos da véspera, “Comi cá ontem umas eiroses em Alcochete que nem vos digo, nem vos conto”, ou “Bebi cá ontem uma pinga em Colares que ainda lhe trago o sabor na língua".


Ilustração de Marius van Dokkum

Via-se bem que o senhor Soares gostava do senhor Moreira, achando-lhe graça talvez, ou percebendo no seu íntimo que se tratava de um tipo de bons sentimentos, o que de resto se revelava naquela cara bolachuda, coberta de suor no Verão, mas um pouco roxa no Inverno.

Mário Cláudio, in Boa noite, senhor Soares, D. Quixote, 2008, 2ª ed., p.14

7 de abril de 2015

Madrugar

Ilustração de Sam Hyuen Kim
Levanto-me muito cedo, recordando-me da observação de uma das queridas Brontë, julgo que Charlotte, e que minha Mãe tantas vezes citava, nos termos da qual quem perde a manhã perde afinal o dia inteiro.

                                                  Mário Cláudio, in O Fotógrafo e a Rapariga, D. Quixote, 2014, p. 15