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27 de novembro de 2012

Nadar por correspondência




Ilustração de Monique Passicot


... ler Literatura não obedece aos mesmos esquemas mentais (e culturais) da leitura de um qualquer outro tipo de texto ou obra. Muito menos se se tratar de um jornal ou revista. O verdadeiro acto de ler (literatura) é por excelência um acto pessoal, criativo, vivo. Não é um acto passivo, maquinal, repetitivo…É um mergulho no interior do texto que acaba por nos tocar e inundar a nossa sensibilidade e ideias. A partir daqui, deste mergulho nas palavras e no ritmo das ideias e das situações, temos o prazer de exercitar a nossa imaginação e sensibilidade – que podem ser manifestadas num comentário pessoal, por escrito, ou até numa simples recriação. Se me afasto do mundo (das pessoas e das coisas) quando leio, porque ler requer isolamento e silêncio, ganho depois um pouco mais de uma outra consciência acerca desse mundo, de mim e dos outros. É justamente por isto que ler é um acto insubstituível. Ninguém, em rigor, pode ler por nós. É como dar mergulhos num rio ou numa piscina: já alguma vez alguém aprendeu a nadar por correspondência? 

Martins, Francisco, in Ao encontro de Aparição – em torno de Vergílio Ferreira, Lisboa, Asa, 1999

26 de novembro de 2012

Olhar reflexivo



Ilustração de Katsuo

E todavia, agora que me descubro vivo, agora que me penso, me sinto, me projecto nesta noite de vento, de estrelas, agora que me sei desde uma distância infinita, me reconheço não limitado por nada mas presente a mim próprio como se fosse o próprio mundo que sou eu, agora nada entendo da minha contingência. 

Como pensar que «eu poderia não existir»? Quando digo «eu», já estou vivo... Como entender que esta iluminação que sou eu, esta evidência axiomática que é a minha presença a mim próprio, esta fulguração sem princípio que é eu estar sendo, como entender que pudesse «não existir»? Como pensar que é nada? 

A minha vida é eterna porque é só a presença dela a si própria, é a sua evidente necessidade, é ser eu, EU, esta brutal iluminação de mim e do mundo, puro acto de me ver em mim, este SER que irradia desde o seu mais longínquo jacto de aparição, este SER-SER que me fascina e às vezes me angustia de terror... E todavia eu sei que «isto» nasceu para o silêncio sem fim...



Vergílio Ferreira, in Aparição, Bertrand, 2000, 54ª ed., p. 50

Fruto do acaso



Ilustração de Francesca Dafne Vignana



Eis-me aqui escrevendo pela noite fora, devastado de Inverno. Eis-me procurando a verdade primitiva de mim, verdade não contaminada ainda da indiferença. Mas onde esse sobressalto de um homem jogado à vida no acaso infinitesimal do universo? Se meu pai não tivesse conhecido minha mãe; se os pais de ambos se não tivessem conhecido; se há cem anos, há mil anos, há milhares e milhares de anos um certo homem não tivesse conhecido certa mulher; se... Nesta cadeia de biliões e biliões de acasos, eis que um homem surge à face da Terra, elo perdido entre a infinidade de elos, de encruzilhadas - e esse homem sou eu...

Vergílio Ferreira, in Aparição, Bertrand, 2000, 54ª ed., pp. 49-50

Fechei os olhos e quis ver




Ilustração de Katsuo

E, todavia como é difícil explicar-me! Há no homem o dom perverso da banalização. Estamos condenados a pensar com palavras, a sentir com palavras, se queremos pelo menos que os outros sintam connosco. Mas as palavras são pedras. Toda a manhã lutei não apenas com elas para me exprimir, mas ainda comigo mesmo para apanhar a minha evidência. A luz viva nas frestas da janela, o rumor da casa e da rua, a minha satisfação nas coisas imediatas mineralizavam-me, embruteciam-me. Tinha o meu cérebro estável como uma pedra esquadrada, estava esquecido de tudo e no entanto sabia tudo. Para reparar a minha evidência necessitava de um estado de graça. Como os místicos em certas horas, eu sentia-me em secura. Fechei os olhos raivosamente e quis ver.  



Vergílio Ferreira, in Aparição, Bertrand, 2000, 54ª ed., p. 44


25 de novembro de 2012

Cultura light

Ilustrações de Susan Herbert

...não é estranho que a literatura mais representativa da nossa época seja a literatura light, leve, ligeira, fácil, uma literatura que sem o menor rubor se propõe antes de mais e sobretudo (e quase exclusivamente) divertir.


 
A literatura light,como o cinema light e a arte light, dá a impressão cómoda ao leitor e ao espectador de ser culto, revolucionário, moderno, e de estar na vanguarda com um mínimo de esforço intelectual. Deste modo, essa cultura que se pretende avançada e de rutura, na verdade propaga o conformismo através das suas piores manifestações: a complacência e a autossatisfação.


Mario Vargas Llosa, in A Civilização do Espetáculo,Quetzal, pp. 34,35  

Aborrecimento cultural

Ilustração de Giedra Purlytė-Mažrimienė



Nos nossos dias, o consumo massivo de marijuana, cocaína, ectasy, crack, heroína, etc., está relacionado com um ambiente cultural de prazeres fáceis e rápidos, que os imunizem contra a preocupação e a responsabilidade, em vez do encontro consigo mesmos através da reflexão e da introspeção, atividades eminentemente intelectuais que são aborrecidas para uma cultura inconstante e lúdica.


Mario Vargas Llosa, in A Civilização do Espetáculo, Quetzal, pp.38-39

24 de novembro de 2012

Vazio

...as drogas...conferem a momentânea segurança de estar a salvo, redimido e feliz. Trata-se de uma ficção, não benigna, antes maligna neste caso, que isola o indivíduo e que só na aparência o liberta de problemas, responsabilidades e angústias. Porque no fim tudo voltará a aprisioná-lo, exigindo-lhe cada vez maiores doses de aturdimento e sobre-excitação que aprofundarão o seu vazio espiritual.

Ilustração de Giedra Purlytė-Mažrimienė
Na civilização do espetáculo, o laicismo ganhou terreno sobre as religiões, aparentemente.

Só pequenas minorias se emancipam da religião substituindo com a cultura o vazio que ela deixa nas suas vidas: a filosofia, a ciência, a literatura e as artes. Mas a cultura que pode cumprir esta função é a alta cultura...
 
Mario Vargas Llosa, in A Civilização do Espetáculo,Quetzal, p. 39 

Frivolidade

O político dos nossos dias, se quer conservar a sua popularidade, é obrigado a dar uma atenção primordial ao gesto e à forma, que importam mais do que os seus valores, convicções e princípios.


Ilustração de Leticia Zamora Méndez

A frivolidade consiste em ter uma tabela de valores invertida ou desequilibrada em que a forma importa mais que o conteúdo, a aparência mais do que a essência e na qual o gesto e desplante - a representação - fazem as vezes de sentimentos e ideias.

Mario Vargas Llosa, in A Civilização do Espetáculo, Quetzal, pp. 47-48 

22 de novembro de 2012

Empobrecimento cultural

A ideia ingénua de que, através da educação, se pode transmitir a cultura à totalidade da sociedade está a destruir a "alta cultura", pois a única maneira de conseguir essa democratização universal da cultura é empobrecendo-a, tornando-a cada dia mais superficial.

Ilustração de Judith Clay
A cultura transmite-se através da família e quando esta instituição deixa de funcionar de maneira adequada o resultado "é a deterioração da cultura". Depois da família, a principal transmissora da cultura ao longo das gerações tem sido a Igreja, e não a escola. Não se deve confundir cultura com conhecimento. "Cultura não é só a soma de diversas atividades, mas sim um estilo de vida", uma maneira de ser em que as formas são tão importantes como o conteúdo. O conhecimento tem a ver com a evolução da técnica e das ciências, e a cultura é algo anterior ao conhecimento, uma propensão do espírito, uma sensibilidade e um cultivo da forma que dá sentido e orientação aos conhecimentos.


  Mario Vargas Llosa, in A Civilização do Espetáculo,  Quetzal, pp. 13-14

21 de novembro de 2012

Cordão umbilical da cultura



Ilustração de Danuta Wojciechowska
Cultura e religião não são a mesma coisa, mas não são separáveis, pois a cultura nasceu dentro da religião e, embora com a evolução histórica da Humanidade se tenha vindo a afastar parcialmente dela, sempre estará unida à sua fonte nutritiva por uma espécie de cordão umbilical. A religião, "enquanto dura, e no seu próprio campo, dá um sentido aparente à vida, proporciona o enquadramento para a cultura e protege a Humanidade no seu todo do aborrecimento e do desespero".





Quando fala de religião, T.S. Eliot refere-se fundamentalmente ao cristianismo, que fez, diz ele, da Europa o que é. "As nossas artes desenvolveram-se dentro do cristianismo, as leis até há pouco tinham as suas raízes nele e foi tendo o cristianismo como fundo que o pensamento europeu se desenvolveu. Um europeu pode não acreditar que a fé cristã seja verdadeira e, no entanto, aquilo que diz, acredita e faz provém da fonte do legado cristão e depende dela o seu sentido. Só uma cultura cristã podia ter produzido Voltaire ou Nietzsche. Eu não acredito que a cultura da Europa pudesse sobreviver ao desaparecimento da fé cristã".

Mario Vargas Llosa, in A Civilização do Espetáculo (citando T.S.Eliot),  Quetzal, pp. 14-15