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30 de abril de 2012

O mistério de ser pessoa

Ilustração de Margarita Sikorskaia


Que misteriosa é esta coisa de se ser uma “pessoa”. (…) Como é que estabelecemos uma relação com alguém? Que é que define esse alguém? (…) Porque uma pessoa não é o feitio do corpo, a face, o modo de falar, de gesticular, de realizar toda a infinita maneira de se manifestar. (…) A última e definitiva realidade dela, aquilo dela com que estabelecemos as nossas relações é o indizível dela, que é aquilo para que falamos, que sentimos que ela é, a indefinível presença que está nela, o “espírito” que isso anima…
                                                                                                                                         


Vergílio Ferreira, in Conta-Corrente III,   pp. 218-219

28 de abril de 2012

Dança

Ilustração de Christiane Vleugels


Quem como eu em silêncio tece
Bailados, jardins e harmonias?
Quem como eu se perde e se dispersa
Nas coisas e nos dias?



Como uma flor incerta entre os teus dedos
Há harmonia de um bailar sem fim,
 E tens o silêncio indizível dum jardim
Invadido de luar e de segredos.



Sophia de Mello Breyner Andresen, in Obra Poética I

27 de abril de 2012

As casas

Ilustração de Joana Concejo
As casas habitadas são belas 
se parecem ainda uma casa vazia 
sem a pretensão de ocupá-las 
tornam-se ténues disposições 
os sinais da nossa presença: 
um livro 
a roupa que chegou da lavandaria 
por arrumar em cima da cama 
o modo como toda a tarde a luz foi 
entregue ao seu silêncio 

Em certos dias, nem sabemos porquê 
sentimo-nos estranhamente perto 
daquelas coisas que buscamos muito 
e continuam, no entanto, perdidas 
dentro da nossa casa 


José Tolentino Mendonça

26 de abril de 2012

O fio de um cabelo

 
Abandono a casa o horto o lugar à mesa
o casaco de que gostava, sobre o leito dobrado
esta verdade quase banal
que toda a vida fui

Não abro a porta quando batem
(às vezes batiam só por engano)
não avalio o balanço das certezas
o que separa uma forma da outra
sempre me escapou

Ontem começava a clarear
o ar frio que vinha dos campos
julguei-o de passagem e afinal
era um segredo que meu corpo
de uma vez por todas contava 
ao meu corpo

Mas quando tombei sobre a terra
perdido como o fio de um cabelo
(aqueles que primeiro caem
da cabeça de um rapaz
e por não serem notados
são mais perdidos ainda)
estavas junto de mim

Lançaste ao fogo cidades
 afogaste os exércitos
no vermelho mar da sua ira
hipotecaste terras tão preciosas
para estares junto de mim

Tolentino Mendonça
 
Ilustracão de Noemí Villamuza
 

25 de abril de 2012

E alegre se fez triste


Ilustração de Mitsuru Watanabe
Aquela clara madrugada que
Viu lágrimas correrem no teu rosto
E alegre se fez triste como se
chovesse de repente em pleno Agosto

Ela só viu meus dedos nos teus dedos
Meu nome no teu nome e demorados
Viu nossos olhos juntos nos segredos
Que em silêncio dissemos separados

A clara madrugada em que parti
Só ela viu teu rosto olhando a estrada
Por onde o automóvel se afastava

E viu que a pátria estava toda em ti
E ouviu dizer adeus essa palavra
Que fez tão triste a clara madrugada

Manuel Alegre, in O Canto e as Armas




Liberté



Sur mes cahiers d'écolier
Sur mon pupitre et les arbres
Sur le sable de neige
J'écris ton nom

Sur les pages lues
Sur toutes les pages blanches
Pierre sang papier ou cendre
J'écris ton nom

      
Sur les images dorées
Sur les armes des guerriers
Sur la couronne des rois
J'écris ton nom

Sur la jungle et le désert
Sur les nids sur les genêts

Sur l'écho de mon enfance
J'écris ton nom

Sur les merveilles des nuits
Sur le pain blanc des journées
Sur les saisons fiancées
J'écris ton nom

Sur tous mes chiffons d'azur
Sur l'étang soleil moisi
Sur le lac lune vivante
J'écris ton nom

Sur les champs sur l'horizon
Sur les ailes des oiseaux
Et sur le moulin des ombres
J'écris ton nom

Sur chaque bouffée d'aurore
Sur la mer sur les bateaux
Sur la montagne démente
J'écris ton nom

Sur la mousse des nuages
Sur les sueurs de l'orage
Sur la pluie épaisse et fade
J'écris ton nom

Sur les formes scintillantes
Sur les cloches des couleurs
Sur la vérité physique
J'écris ton nom

Sur les sentiers éveillés
Sur les routes déployées
Sur les places qui débordent
J'écris ton nom

Sur la lampe qui s'allume
Sur la lampe qui s'éteint
Sur mes maisons réunies
J'écris ton nom

Sur le fruit coupé en deux
Du miroir et de ma chambre
Sur mon lit coquille vide
J'écris ton nom

Sur mon chien gourmand et tendre
Sur ses oreilles dressées
Sur sa patte maladroite
J'écris ton nom

Sur le tremplin de ma porte
Sur les objets familiers
Sur le flot du feu béni
J'écris ton nom

Sur toute chair accordée
Sur le front de mes amis
Sur chaque main qui se tend
J'écris ton nom

Sur la vitre des surprises
Sur les lèvres attendries
Bien au-dessus du silence
J'écris ton nom

Sur mes refuges détruits
Sur mes phares écroulés
Sur les murs de mon ennui
J'écris ton nom

Sur l'absence sans désir
Sur la solitude nue
Sur les marches de la mort
J'écris ton nom

Sur la santé revenue
Sur le risque disparu
Sur l'espoir sans souvenir
J'écris ton nom
Ilustração de Inna Panesenko

Et par le pouvoir d'un mot
Je recommence ma vie
Je suis né pour te connaître
Pour te nommer






Paul Eluard, in Poésies et vérités, Ed. de Minuit, 1942

24 de abril de 2012

O silêncio

Ilustração de Laimonas Smergelis
Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?

                                  
                                                              Eugénio de Andrade

23 de abril de 2012

Poesia discreta

Ilustração de Kaatje Vermeire
Onde a poesia se exibe como um espectáculo espectacular
não é poesia
onde a audácia do poema não é única
não é poesia
onde a poesia não é inocência de natureza fluvial
não é poesia
onde a poesia não é escandalosamente pura
não é poesia
onde a poesia não é filha do deserto nem da sede
não é poesia
onde a poesia não é presença viva que nasce da solidão e da ausência
não é poesia
onde a poesia não se oferece no seu abandono
não é poesia
onde a poesia não é poesia
não é poesia
António Ramos Rosa, in O Sol é Todo o Espaço, 2002

Sonhos dos livros


O verão deixa-me os olhos mais lentos sobre os livros.
As tardes vão-se repetindo no terraço, onde as palavras
são pequenos lugares de memória. Estou divorciada dos
outros pelo tempo destas entrelinhas - longe de casa,
tenho sonhos que não conto a ninguém, viro devagar

a primeira página: em fevereiro, eles ainda faziam amor
à sexta-feira. De manhã, ela torrava pão e espremia
Ilustração de Julia Humpfer
laranjas numa cozinha fria. Havia mais toalhas para lavar
ao domingo, cabelos curtos colados teimosamente ao espelho.
Às vezes, chovia e ambos liam o jornal, dentro do carro,
antes de se despedirem. Às vezes, repartiam sofregamente
a infância, postais antigos, o silêncio - nada

aconteceu entretanto. Regresso, pois, à primeira linha,
à verdade que remexe entre as minhas mãos. Talvez os olhos
estivessem apenas desatentos sobre o livro; talvez as histórias
se repitam mesmo, como as tardes passadas no terraço, longe
de casa. Aqui tenho sonhos que não conto a ninguém.

Maria do Rosário Pedreira, in A Casa e o Cheiro dos Livros

A casa onde às vezes regresso é tão distante

Ilustração de Limeunhee
A casa onde às vezes regresso é tão distante
da que deixei pela manhã
no mundo
a água tomou o lugar de tudo
reúno baldes, estes vasos guardados
mas chove sem parar há muitos anos

Durmo no mar, durmo ao lado do meu pai
uma viagem se deu
entre as mãos e o furor
uma viagem se deu: a noite abate-se fechada
sobre o corpo

Tivesse ainda tempo e entregava-te 
o coração


Tolentino Mendonça, A que distância deixaste o coração

22 de abril de 2012

Sem ti

Ilustração de Sonja Dimovska

E de súbito desaba o silêncio.
É um silêncio sem ti,
sem álamos,
sem luas.

Só nas minhas mãos
ouço a música das tuas.



Eugénio de Andrade

Promessa

Ilustração de Émilie Vast

És tu a Primavera que eu esperava,
A vida multiplicada e brilhante,
Em que é pleno e perfeito cada instante.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in Obra Poética I

21 de abril de 2012

Momentos especiais


O principezinho voltou no dia seguinte.

- Era melhor teres vindo à mesma hora - disse a raposa. Se vieres, por exemplo, às quatro horas, às três, já eu começo a ser feliz. E quanto mais perto for da hora, mais feliz me sentirei. Às quatro em ponto já hei-de estar toda agitada e inquieta: é o preço da felicidade! Mas se chegares a uma hora qualquer, eu nunca saberei a que horas é que hei-de começar a arranjar o meu coração, a vesti-lo, a pô-lo bonito...São precisos rituais.
 
Ilustração de Limeunhee

- O que é um ritual? - perguntou o principezinho.
- Também é uma coisa de que toda a gente se esqueceu - respondeu a raposa. - É o que faz com que um dia seja diferente dos outros dias e uma hora, diferente das outras horas.

20 de abril de 2012

Vaidade

Ilustração de Cecelia Webber
...a flor nunca mais acabava de se arranjar, de se pôr bonita, sempre trancada no seu quarto verde. Escolhia as cores com todo o cuidado. Vestia-se vagarosamente, assentando as pétalas uma a uma. Não queria sair toda amarrotada, como as papoilas. Só queria aparecer no máximo esplendor da sua beleza. Oh, sim! Ela era mesmo muito vaidosa!

Ilustração de Dina


Os vaidosos nunca ouvem senão os elogios.

Saint-Exupéry, in O Principezinho 

É preciso muita paciência...

Ilustração de Limeunhee
- Só conhecemos aquilo que cativamos - disse a raposa. - Os homens, agora, já não têm tempo para conhecer nada. Compram as coisas já feitas nos vendedores. Mas como não há vendedores de amigos, os homens já não têm amigos. Se queres um amigo, cativa-me!

- E o que é que é preciso fazer? - perguntou o principezinho.

- É preciso ter muita paciência. Primeiro, sentas-te um bocadinho afastado de mim, assim, em cima da relva. Eu olho para ti pelo canto do olho e tu não dizes nada. A linguagem é uma fonte de mal-entendidos. Mas todos os dias te podes sentar um bocadinho mais perto...

Saint-Exupéry, in O Principezinho

19 de abril de 2012

Camoniana

Ilustração de Alberto Godoy
Quem és tu, bárbara, que moras
num poema que se estuda nas escolas
e se lê em recitais,
- tu que te limitaste a ser amada
por um poeta que, se calhar, mais
não te deu em troca do amor
do que esse poema que tu, se calhar,
nunca chegaste a ouvir? Quem és,
ó mulher mais real do que esse
poeta que te cantou, e de cuja vida
ninguém sabe nada - a não ser
que te amou, e te deitou nesse
poema em que ainda vives, e respiras
como no dia em que ele o escreveu
lembrando-se do teu corpo, e dos
teus lábios, e dos dias, ou noites,
que contigo se passaram? Quem és,
mulher real e sonhada que habitas
todos os poemas que esse poema
inspirou, e todos os sonhos que
nessa bárbara encontraram uma imagem
precisa e definitiva? Volta-te
nesses versos, para que te vejamos
o rosto, e diz-nos o teu nome - o nome
autêntico, e não esse que o poeta
inventou para te chamar num poema
que de ti só guarda o segredo;
e adormece depois, esquecendo
o que de ti disseram, e os comentários
de que foste o pretexto, e as imagens
em que, cada vez mais, foste perdendo
a tua, e única, imagem.


                                                                   Nuno Júdice

18 de abril de 2012

Endechas a Bárbara Escrava

Ilustração de Alberto Godoy
Aquela cativa
Que me tem cativo,
Porque nela vivo
Já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
Em suaves molhos,
Que pera meus olhos
Fosse mais fermosa.

Nem no campo flores,
Nem no céu estrelas
Me parecem belas
Como os meus amores.
Rosto singular,
Olhos sossegados,
Pretos e cansados,
Mas não de matar.

Uma graça viva,
Que neles lhe mora,
Pera ser senhora
De quem é cativa.
Pretos os cabelos,
Onde o povo vão
Perde opinião
Que os louros são belos.

Pretidão de Amor,
Tão doce a figura,
Que a neve lhe jura
Que trocara a cor.
Leda mansidão,
Que o siso acompanha;
Bem parece estranha,
Mas bárbara não.

Presença serena
Que a tormenta amansa;
Nela, enfim, descansa
Toda a minha pena.
Esta é a cativa
Que me tem cativo;
E. pois nela vivo,
É força que viva.

                                        Luís de Camões

17 de abril de 2012

Não adormeças

Ilustração de Sam Hyuen Kim

Não adormeças: o vento ainda assobia no meu quarto
e a luz é fraca e treme e eu tenho medo
das sombras que desfilam pelas paredes como fantasmas
da casa e de tudo aquilo com que sonhes.

Não adormeças já. Diz-me outra vez do rio que palpitava
no coração da aldeia onde nasceste, da roupa que vinha
a cheirar a sonho e a musgo e ao trevo que nunca foi
de quatro folhas; e das ervas húmidas e chãs
com que em casa se cozinham perfumes que ainda hoje
te mordem os gestos e as palavras.

Ilustração de Carme Solé Vendrell
O meu corpo gela à míngua dos teus dedos, o sol vai
demorar-se a regressar. Há tempo para uma história
que eu não saiba e eu juro que, se não adormeceres,
serei tão leve que não hei-de pesar-te nunca na memória,
como na minha pesará para sempre a pedra do teu sono
se agora apenas me olhares de longe e adormeceres.

                                                                            Maria do Rosário Pedreira, in A Casa e o Cheiro dos Livros

Que é a poesia?

Ilustração de Juri Romanov


uma ilha
cercada
de palavras
por todos
os lados.

Cassiano Ricardo

16 de abril de 2012

O cheiro da escrita

Ilustração de Alice Vilhena
E depois estava a escrever... estava a escrever de novo. As  personagens eram só personagens, a casa era só uma gravura, e não havia amor, e não havia sofrimento.

O livro estava a tomar a sua forma definitiva e ela descobria coisas novas nele, estranhas simetrias (assustadoras simetrias), por vezes uma anotação na margem dava um sentido inquietante às outras palavras... E ela encontrava-se naquele estado que não tinha nome, consciência alterada, talvez um estado de graça, e o livro era só a parte visível do que estava a acontecer. E por vezes levantava-se e olhava em volta, porque sentia, muito forte, dentro do quarto, o cheiro da pantera.
Ilustração de Helene Terlien

Ana Teresa Pereira, in A Pantera (2011:85)
 
 
E era um cheiro quente e doce. Um cheiro vivo. Ela criara uma coisa.

ibidem (p.88)

15 de abril de 2012

Amendoeira em flor

Van Gogh, Amendoeira em flor


Um dia sentou-se à secretária e abriu o caderno de capa dura (ramos de amendoeira e céu de um azul único, pormenor de um quadro de Van Gogh) que comprara anos antes em Amesterdão.

Ana Teresa Pereira, in A Pantera (2011:84)

Escrita indefinível

Ilustração de Graham Franciose


De vez em quando distraía-se com a beleza profunda do lugar, e com qualquer coisa de indefinível, quase perigoso, que pairava nas águas, mas isso era parte da sua escrita.
O crepúsculo estava a chegar e os pássaros tinham ficado silenciosos e uma neblina leve formava-se sobre as águas, entre os juncos. Kate ouviu o som de um ramo a partir-se e voltou-se bruscamente, embora soubesse que só podia ser ele.

Ana Teresa Pereira, in A Pantera (2011:77)

14 de abril de 2012

Medo da escrita

Ilustração de Liu Ye


E na mala levava os seus notebooks, o seu livro. Queria começar a escrevê-lo, e ao mesmo tempo tinha um medo enorme de o fazer.


Ana Teresa Pereira, in A Pantera (2011:83)

13 de abril de 2012

Justiça e poder maquiavélico

Ilustração de Marie Desbons
Uma mulher processa um homem em tribunal por difamação de carácter, alegando que lhe chamou porca. O homem é considerado culpado e obrigado a pagar-lhe uma indemnização. Após o julgamento, o homem pergunta ao juíz:

- Isto significa que nunca mais poderei chamar porca à senhora Harding?
- Correcto - responde o juíz.
- E isso  significa que não posso chamar senhora Harding a uma porca?
- Não - diz o juíz -, o senhor é livre de chamar  senhora Harding a uma porca. Não é crime.
O homem olha a senhora Harding nos olhos e diz:
- Boa tarde, senhora Harding.


Thomas Cathcart e Daniel Klein, (2007: 85), in Platão e um Ornitorrinco entram num bar...Filosofia com humor

12 de abril de 2012

Escuto


Ilustração de Violetno
Escuto mas não sei
se o que oiço é silêncio
ou Deus

Escuto sem saber se estou ouvindo
o ressoar das planícies do vazio
ou a consciência atenta
que nos confins do universo
me decifra e fita.

Apenas sei que caminho como quem
é olhado, amado e conhecido
e por isso em cada gesto ponho
solenidade e risco.

  Sophia de Mello Breyner Andresen

Rapariga descalça

Ilustração de Mariana Kalacheva
Chove. Uma rapariga desce a rua.
Os seus pés descalços são formosos.
São formosos e leves: o corpo alto
parte dali, e nunca se desprende.

A chuva em abril tem o sabor do sol:
cada gota recente canta na folhagem.
O dia é um jogo inocente de luzes,
de crianças ou beijos, de fragatas.

Uma gaivota passa nos meus olhos.
E a rapariga – os seus formosos pés –
canta, corre, voa, é brisa, ao ver
o mar tão próximo e tão branco.

Eugénio de Andrade

Descalça vai para a fonte


Ilustração de David Galchutt


Descalça vai para a fonte
Lianor pela verdura;
Vai fermosa, e não segura.


Leva na cabeça o pote,
O testo nas mãos de prata,
Cinta de fina escarlata,
Sainho de chamelote;
Traz a vasquinha de cote,
Mais branca que a neve pura.
Vai fermosa e não segura.




Descobre a touca a garganta,
Cabelos de ouro entrançado
Fita de cor de encarnado,
Tão linda que o mundo espanta.
Chove nela graça tanta,
Que dá graça à fermosura.
Vai fermosa e não segura.
                                                                                                                          
                                                                  
                                                                                 Luís de Camões

11 de abril de 2012

Coração habitado

Ilustração de Mariana Kalacheva
Aqui estão as mãos.
São os mais belos sinais da terra.
Os anjos nascem aqui:
frescos, matinais, quase de orvalho,
de coração alegre e povoado.

Ponho nelas a minha boca,
respiro o sangue, o seu rumor branco,
aqueço-as por dentro, abandonadas
nas minhas, as pequenas mãos do mundo.

Alguns pensam que são as mãos de deus
— eu sei que são as mãos de um homem,
trémulas barcaças onde a água,
a tristeza e as quatro estações
penetram, indiferentemente.

Não lhes toquem: são amor e bondade.
Mais ainda: cheiram a madressilva.
São o primeiro homem, a primeira mulher.

E amanhece.



Eugénio de Andrade

10 de abril de 2012

Um amigo...


Ilustração de Laimonas Smergelis




...é o lugar da terra
onde as maçãs brancas são mais doces.


Eugénio de Andrade, in "Dissonâncias"

O amor afasta o nevoeiro




Tom fez um gesto, como se afastasse o nevoeiro do cabelo dela.


Ana Teresa Pereira, in A Pantera (2011:53)

9 de abril de 2012

Gratuidade


Ilustração de Laimonas Smergelis


O amor e o espanto, o riso e o dia, a alegria e a dança são sem porquê.



Tolentino Mendonça

8 de abril de 2012

Tudo é canto!

Ilustração de Laimonas Smergelis


A palavra nasceu:
nos lábios cintila.

Carícia ou aroma,
mal poisa nos dedos.

De ramo em ramo voa,
na luz se derrama.

A morte não existe:
tudo é canto e chama.

Eugénio de Andrade, "Metamorfoses da palavra"

Parafuso no vento

Primeiro o menino viu uma estrela
pousada nas pétalas da noite
E foi contar para a turma.
A turma falou que o menino zoroava.

Logo o menino contou que viu o dia
parado em cima de uma lata
Igual que um pássaro pousado sobre uma pedra.
Ele disse: Dava a impressão que a lata amparava o dia.
A turma caçoou.
Mas o menino começou a apertar parafuso no vento.

A turma falou: Mas como você pode apertar
parafuso no vento
Se o vento nem tem organismo.
Mas o menino afirmou que o vento tinha organismo
E continuou a apertar parafuso no vento.

                                                                          
Manoel de Barros, "O vidente" (poeta brasileiro)


Ilustrações de Laimonas Smergelis
Por vezes não entendemos as metáforas.

É preciso  olhos novos, novos sons, para descobrir como a esperança mora por detrás de um gesto: o de um menino que continua a acreditar que é possível “apertar parafuso no vento”. Com persistência. Com esperança. Com gesto renovado. Eis a Páscoa.

A noite anuncia o dia

Ilustração de Laimonas Smergelis
De palavra em palavra
a noite sobe
aos ramos mais altos

e canta o êxtase do dia.


Eugénio de Andrade

7 de abril de 2012

Ah, um dia...

Ilustração de Laimonas Smergelis


Ah, um dia a casa será bosque,
à sua sombra encontrarei a fonte
onde um rumor de água é só silêncio.
                                     
                                              Eugénio de Andrade, in Metamorfoses da casa

6 de abril de 2012

O baile das sombras


Ilustração de Laimonas Smergelis
O pior é ter atravessado a vida sem naufrágios, isto é, ter permanecido à superfície das coisas, ter dançado o baile das sombras perdidos na inconsistência, ter ficado aprisionados no pântano do "diz-que-diz", das aparências, dos lugares comuns, e não ter sido jamais precipitado, não ter ido jamais até ao fim, até ao fundo, de uma dimensão profunda de si e das relações.


Christiane, Singer, Do bom uso das crises, apud Tolentino Mendonça, op.cit.

Construção da confiança


Ilustração de Laimonas Smergelis
O caminho crente não é o caminho da construção de uma certeza, mas é o caminho da construção de uma confiança, e isto são coisas muito diferentes.

José Tolentino Mendonça, As crises são grandes mestres -
 
Para uma teologia da crise