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Ilustração de Laimonas Smergelis |
- Nunca reparaste que há certas coisas que nós já vimos
muitas vezes e que de vez em quando é como se fosse a primeira?
- Nunca
reparei – disse a rapariga.
- Nunca
ficaste a olhar o mar muito tempo?
- Sim, já
fiquei.
- Ou o lume
de um fogão? – disse o rapaz.
- E que
queres dizer com isso?
- Ou uma
flor. Ou ouvir um pássaro cantar.
- Sim, sim.
- Não há nada
mais igual do que o mar ou o lume ou uma flor. Ou um pássaro. E a gente não se
cansa de os ver ou ouvir. Só é preciso que se esteja disposto para achar
diferença nessa igualdade. Posso olhar o mar e não reparar nele, porque já o
vi. Mas posso estar horas a olhar e não me cansar da sua monotonia.
O rapaz tinha
o olhar absorto na extensão das águas e permaneceu calado algum tempo. As águas
brilhavam com o reflexo do sol na agitação breve das ondas. A rapariga
calava-se também, fitando o rapaz, porque percebia que ele não acabara de
falar. Mas o rapaz calou-se como se não tivesse mais nada a dizer e ela
perguntou:
- Mas que é
que querias dizer-me?
- Mesmo as
coisas mais banais são diferentes se alguma coisa importante se passou em nós.
(...)
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Ilustração de Laimonas Smergelis |
- O médico
foi claro. Havia um relógio na secretária e olhei as horas. Eram cinco
precisas. Estava calmo e reparei. Tenho dois ou três meses no máximo. O tempo
contado dia a dia. E é extraordinário como tudo agora me parece diferente. Mais
belo talvez. Creio que vou viver agora mais intensamente. Dia a dia. E três
meses no máximo.
- Espera!
Três meses como? – disse a rapariga, subitamente iluminada.
Pôs-lhe a mão
no braço e olhava-o fixamente. Ele olhou-a também e ambos ficaram a tentar
entender-se em silêncio. (...)
Estava uma
tarde cheia de sol. As águas brilhavam até ao limite do horizonte, um barco à
vela ia passando pela estrada de lume. O ar estava quente. E a brisa do mar
quase não chegava ali.
Vergílio Ferreira, "Uma esplanada sobre o mar", in Contos