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3 de janeiro de 2014

A manhã do poema

Ilustração de Marie Cardouat 


Nasceu de uma colheita de espumas azuis, e 
encho a cesta do horizonte com as espigas maduras
do seu coral submerso. Como as asas decepadas
das grandes aves que se ferem numa combustão
de nuvens, as palavras caem no chão da estrofe
para que as separe, e junte as que conservaram
o sopro húmido da tua voz ao som das foices
que avançam contra o sol, desbastando a folhagem
da memória. Em vez de correr contra o tempo,
separo de entre esses ramos de imagens aquelas que
me ditaram os versos mais obscuros, a luz
de acaso que deles surgia, em cintilações de sílaba,
e um reflexo de madrugada na face liberta
de uma lenta sombra. E carrego essa cesta
como se regressasse de uma vindima de emoções,
seguindo o ritmo da frase que se escreve
na interrupção das vagas, e o vento derramou
no ouvido dos amantes.


                       Nuno Júdice, in Navegação de acaso, D. Quixote, 2013, p. 72

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