Um blogue que se alimenta de e com ilustrações e palavras, sobretudo textos literários.
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24 de dezembro de 2015
Para dizer junto à manjedoura
Que Teus olhos, Menino, ensinem largueza
e altura aos meus olhos
Que Teus olhos curem os meus
da fadiga e dos seus filtros
Que Teus olhos desimpeçam a visão
fragmentária, parcial e indecisa
Que Teus olhos devolvam aos meus olhos
o vento azul da viagem e a sua alegria
Devolvam o real como anel aberto
em vez dos círculos obsidiantes e fechados
Devolvam o aberto como imagem
e programa
Que Teus olhos, Menino, ensinem aos meus
o seu natal
Tolentino
Mendonça
23 de dezembro de 2015
Construir a manjedoura
Ilustração de Lynn Gaines |
Ensina-nos, Senhor, como se constrói a manjedoura onde nasces
Ensina-nos que duas mãos que se avizinham são uma manjedoura
um abraço tem, sem palavras, aquilo que tem uma manjedoura
uma mesa fraterna que se abre desenha
a forma da Tua manjedoura
Ensina-nos que duas mãos que se avizinham são uma manjedoura
um abraço tem, sem palavras, aquilo que tem uma manjedoura
uma mesa fraterna que se abre desenha
a forma da Tua manjedoura
Ensina-nos, Senhor, como se constrói a manjedoura onde nasces
Ensina-nos que a misericórdia é a matéria mais apropriada
assim como a gratuidade, o perdão, os reencontros nem sempre fáceis,
a conversa recomeçada depois de uma interrupção dolorosa
o dom que compromete, o gesto de amor
os tráficos tantas vezes renascidos da dura cinza
mas que a alegria, a Tua alegria em nós,
faz parecer completamente naturais no seu feliz azul aéreo
Ensina-nos que a misericórdia é a matéria mais apropriada
assim como a gratuidade, o perdão, os reencontros nem sempre fáceis,
a conversa recomeçada depois de uma interrupção dolorosa
o dom que compromete, o gesto de amor
os tráficos tantas vezes renascidos da dura cinza
mas que a alegria, a Tua alegria em nós,
faz parecer completamente naturais no seu feliz azul aéreo
Ensina-nos, Senhor, como se constrói a manjedoura onde nasces
arte divina de que a partir de Ti somos capazes
arte divina de que a partir de Ti somos capazes
Tolentino
Mendonça
8 de dezembro de 2015
Não há dia nenhum que não nos visite
Ilustração de Sofia Golovanova |
Não há dia nenhum que não nos visite
um Anjo Teu:
na alegria que saboreamos como dom
no azul de certas presenças
que persiste depois em nós por longo tempo
no diálogo unânime, na palavra transparente
mas também no desejo frágil que não raro é o da vida
no seu passo indeciso, interrompido e cinzento
ou na ferida que nos pede mais aceitação do que cura
um Anjo Teu:
na alegria que saboreamos como dom
no azul de certas presenças
que persiste depois em nós por longo tempo
no diálogo unânime, na palavra transparente
mas também no desejo frágil que não raro é o da vida
no seu passo indeciso, interrompido e cinzento
ou na ferida que nos pede mais aceitação do que cura
Não há dia nenhum que não nos visite
um Anjo Teu:
no que desce ou ascende em silêncio
e depende e não depende apenas de nós
na imperfeição e na sede que numas horas pesa
e noutras nos alavanca
na vida minúscula, no encontro talvez ínfimo
em busca daquela evidência
que na pobreza do presépio tocamos
um Anjo Teu:
no que desce ou ascende em silêncio
e depende e não depende apenas de nós
na imperfeição e na sede que numas horas pesa
e noutras nos alavanca
na vida minúscula, no encontro talvez ínfimo
em busca daquela evidência
que na pobreza do presépio tocamos
Não há dia nenhum que não nos visite
um Anjo Teu
um Anjo Teu
José Tolentino Mendonça
22 de novembro de 2015
Pergunta-me
Ilustração de Lucy Campbell |
Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue
Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos
Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente
Ilustração de Serena Curmi |
Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer
Mia Couto
8 de novembro de 2015
15 de outubro de 2015
O olhar aquilino do Falcoeiro
Ilustração de Alex Pelayo |
De vez em quando apontava os binóculos para casa, conseguia ver Lola na sua lide caseira, pendurando roupa a secar numa corda. Deixara de gostar dela há muito, viviam juntos mais por hábito do que por outro motivo qualquer. A aversão dela aos falcões fazia-o ter vontade de a deixar, mas enquanto lhe tratasse da roupa e lhe pusesse comida na mesa ao fim de tarde, não pensaria nisso.
Miguel Miranda, "O olhar aquilino do Falcoeiro", in A fome do licantropo e outras histórias,
Porto Editora, 20014, 1ª ed., p. 43
13 de outubro de 2015
Cantiga
Ilustração de Yoshinori Mozneko |
É pelo teu rosto em que as marés passam,
pelos teus lábios em que voam gaivotas,
pelos teus dedos em que a luz perpassa,
pelos teus olhos que me traçam as rotas,
que este barco encontra o caminho,
que este dia descobre que não é tarde,
que as palavras se bebem como vinho,
e o fogo não queima quando arde.
É no que me dizes quando a noite fala,
no que perdura da manhã que se esquece,
no que é dito em tudo o que se cala,
e não precisa de ser dito quando amanhece.
Ilustração de Jen Corace |
ou só aquilo que vive no coração,
pode ser o que pensava ter esquecido,
e regressa agora pela tua mão.
Quantas vezes já foi primavera,
e logo aí as flores morreram:
até ao dia em que nada ficou como era,
e todas as folhas mortas reverdeceram.
Dedicatória
Ilustração de Kristian Adam |
Para ti, de corpo aberto como a taça do
horizonte, onde se derrama o vinho fresco
da madrugada, é o poema que os deuses
esqueceram numa antiga encruzilhada. Leio-te
com a voz do vento cada uma das suas
palavras; e elas soltam-se do verso, como insectos
luminosos, roubando aos teus olhos um
cenário de clareiras e colinas.
No chão, onde a toalha do amor se estende,
nasceram as flores inextinguíveis da manhã. Conto
as suas pétalas num exercício de lenta
matemática, dando cor a cada número; e
os teus dedos tingem-se do seu fulgor,
roubando à terra os verdes que a primavera
declina, e ao céu os tons de azul com que
o verão encheu a tua sombra.
Ilustração de Mrzyk Moriceau |
Sacrifico ao rigor da imagem o perfil
que a transparência sonha; e saboreio a água
fresca do ribeiro que corre nos teus lábios,
quando me falas, e todas as aves se juntam
no teu colo de nuvem. Despes, devagar, a túnica
da tarde; e um resto de melancolia envolve
o gesto que amadurece o desejo,
como um fruto, quando os corpos caem.
Tu, cujas mãos se libertam do espelho,
desenhando a linha que o sonho atravessa.
Nuno Júdice, in Fórmulas de uma luz inexplicável, D. Quixote, 2012, 2ª ed., p. 26
Para ti, de corpo aberto como a taça do
horizonte, onde se derrama o vinho fresco
da madrugada, é o poema que os deuses
esqueceram num antiga encruzilhada. Leio-te
com a voz do vento cada uma das suas
palavras; e elas soltam-se do verso, como insectos
luminosos, roubando aos teus olhos um
cenário de clareiras e colinas.
No chão, onde a toalha do amor se estende,
nasceram as flores inextinguíveis da manhã. Conto
as suas pétalas num exercício de lenta
matemática, dando cor a cada número; e
os teus dedos tingem-se do seu fulgor,
roubando à terra os verdes que a primavera
declina, e ao céu os tons de azul com que
o verão encheu a tua sombra.
Sacrifico au rigor da imagem o perfil
que a transparência sonha; e saboreio a água
fresca do ribeiro que corre nos teus lábios,
quando me falas, e todas as aves se juntam
no teu colo de nuvem. Despes, devagar, a túnica
da tarde; e um resto de melancolia envolve
o gesto que amadurece o desejo,
como um fruto, quando os corpos caem.
Tu, cujas mãos se libertam do espelho,
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