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31 de julho de 2015

Não sou nada


Ilustração de  Mario Rosales Arredondo



Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Álvaro de Campos, in "Tabacaria"

30 de julho de 2015

Come chocolates, pequena, come chocolates


Ilustração de Linda Olafsdottir



(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)




 Álvaro de Campos, in "Tabacaria"


29 de julho de 2015

Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave



Ilustração de Robert Neubecker

Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.


                                                                                     Alberto Caeiro

28 de julho de 2015

Se, depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia


 
Ilustração de Colin Thompson


Se, depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples
Tem só duas datas — a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra coisa todos os dias são meus. 



(...)


Alberto Caeiro

26 de julho de 2015

Compreender com os olhos

Ilustração de Claire Mojher
(...)



Sou fácil de definir.
Vi como um danado.
Amei as coisas sem sentimentalidade nenhuma.
Nunca tive um desejo que não pudesse realizar, porque nunca ceguei.
Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento de ver.
Compreendi que as coisas são reais e todas diferentes umas das outras;
Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento.
Compreender isto com o pensamento seria achá-las todas iguais.

Um dia deu-me o sono como a qualquer criança.
Fechei os olhos e dormi.
Além disso, fui o único poeta da Natureza. 



Alberto Caeiro, "Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia" in Eu só penso no sol

21 de julho de 2015

Nada entre nós tem o nome da pressa

Nada entre nós tem o nome da pressa.
Conhecemo-nos assim, devagar, o cuidado
traçou os seus próprios labirintos. Sobre a pele
é sempre a primeira vez que os gestos acontecem. Porém,

se se abrir uma porta para o verão, vemos as mesmas coisas - 
o que fica para além da planície e da falésia; a ilha,
um rebanho, um barco à espera de partir, uma palavra
que nunca escreveremos. Entre nós


Ilustração de Casey O'Connell



o tempo desenha-se assim, devagar.
Daríamos sempre pelo mais pequeno engano.

           Maria do Rosário Pedreira, in Poesia Reunida, Quetzal poesia, 2012, 1ª ed., p. 43

19 de julho de 2015

oh, se pudesses voltar

oh, se pudesses voltar, mostrava-te as sete luas que se vêem
da janela do meu quarto. E os sete sóis, se nele quisesses
passar mais de uma noite. Nada disto te revelei antes,
que eram segredos meus - e eu, aos segredos, guardo-os
até ser tarde [de mais] para contá-los.

 
Ilustração de Joanna Concejo


oh, se pudesses voltar, havia de levar-te a ver o jardim,
por trás da casa, onde há uma nespereira que é só minha
e a cuja sombra podíamos ler no verão, se o verão viesse
e tu quisesses passá-lo só comigo. E também a clarabóia,
no telhado, que tem um vidro a menos por onde, de vez
em quando, caem estrelas; e tão pequenas que se perdem nos olhos
de quem se põe assim, a olhá-las, sem saber de onde vêm -


dizem que são anjos que as lançam devagar para aquecer
as noites. Talvez também te mostrasse os anjos se voltasses.


                               Maria do Rosário Pedreira, in Poesia Reunida, Quetzal poesia, 2012, 1ª ed., p.77

17 de julho de 2015

Escolher o mundo

Ilustração de Martijn van der Linden

  Na luta entre ti e o mundo, apadrinha o mundo.

Franz Kafka, in Aforismos (escritos na localidade histórica de Zürau), Assírio&Alvim, 2008, p.77

16 de julho de 2015

Adão e Eva

Ilustração de Alberto Godoy

 Foi necessária a mediação da serpente: o Mal pode seduzir o Homem, mas não se pode tornar Homem.


Franz Kafka, in Aforismos (escritos na localidade histórica de Zürau), Assírio&Alvim, 2008, p.76

14 de julho de 2015

Uma estrela brilha

Ilustração de Ota eJane Dek



Ainda nunca estive neste local: respira-se de outra forma, mais ofuscante que o sol, brilha ao seu lado uma estrela. 




Franz Kafka, in Aforismos (escritos na localidade histórica de Zürau), Assírio&Alvim, 2008, p. 41



13 de julho de 2015

A inquieta sabedoria do amor

Ilustrações de Mary Antony

Trabalho sobre a ideia de viagem. Sigo ao longo dos carris do verso, ouvindo a máquina do canto ritmar o movimento dos passos. Resta-nos esta descoberta: o continente húmido dos sentimentos, as doces colinas que percorro com as mãos, e esses cumes para onde os teus olhos me encaminham, com a inquieta sabedoria do amor.



Roubo à imagem o seu líquido celeste; espalho-o sobre a terra gasta do corpo, vendo formarem-se os sulcos por onde corre a seiva abstracta do canto. Ensino-te a plantar este campo de flores, coleccionadora de pétalas, e a encher o herbário do corpo com as folhas arrancadas a um arco-íris de sensações.


Nuno Júdice, "Oito fragmentos" in O fruto da gramática, 2015, 2ª ed., p. 83 (fragmento 2)

11 de julho de 2015

Somos as pontas de uma mesma fita

Ilustração de Mariana Kalacheva

Somos as pontas de uma mesma fita
e acordamos atados de manhã num
nó que ainda demora a desfazer. Ao

 

levantar-me, arrasto-te comigo, mas
no resto da vida é ao contrário - e eu

nem me importo que me leves atrás
se o laço for contigo, e apertado. Mas,


quando calha, é mais comprida a fita; e
eu - inquieta, sem saber onde estás - fico
a contar os metros, aflita, e a magicar em
franzidos e embaraços. Eis senão quando


tu apareces amarrotado de cansaço e nos
meus braços logo te desfias. Vencido
o susto, passa-se a fita a ferro - para
se enredar de novo num nó cego que
de manhã vai ser um custo desatar.



 Maria do Rosário Pedreira, in Poesia Reunida, Quetzal poesia, 2012, 1ª ed., p. 242

10 de julho de 2015

Deixei-te um beijo sobre a tua almofada


Ilustração de Mariana Kalacheva


Saio da cama pela fenda do lençol e
fecho-a sobre ti. Toco o chão ao de
leve, como uma ave pousa na pele
das ondas. Visto-me às escuras — tão

mais discreta a blusa do avesso, a saia
tão distraída nas costuras. Vou
para a cozinha de sapatos na mão e

escrevo-te um bilhete: deixei-te um
beijo sobre a tua almofada antes
de sair. Não preciso assinar.


 Maria do Rosário Pedreira, in Poesia Reunida, Quetzal poesia, 2012, 1ª ed., p.194

8 de julho de 2015

Talvez este amor estivesse escrito...

 Ilustração de Ruth Taylor


Esgotamos os desacordos
em livros pequenos: lermos
juntos substitui a cama e as
conversas. Talvez este amor

estivesse escrito e, por isso,
ao virar da página, haja
sempre uma mão do outro lado,
quente, apertada na nossa.



 
 Maria do Rosário Pedreira, in Poesia Reunida, Quetzal poesia, 2012, 1ª ed., p. 241

7 de julho de 2015

Entraste numa tarde, por engano

Nunca soube o teu nome. Entraste numa tarde,
por engano, a perguntar se eu era outra pessoa -
um sol que de repente acrescentava cal aos muros,
um incêndio capaz de devorar o coração do mundo.



Ilustração de Mariana Kalacheva

Não te menti; levantei-me e fui levar-te à porta certa
como um veleiro arrasta os sonhos para o mar; mas,
antes de te deixar, disse-te ainda que nessa tarde
bem teria gostado de chamar-me outra coisa - ou
de ser gato, para poder ter mais do que uma vida.



           Maria do Rosário Pedreira, in Poesia Reunida, Quetzal poesia, 2012, 1ª ed., p. 157

5 de julho de 2015

Se ainda não sabias...

Ilustração de Aurélie Blanz

Não tenho planos, nem promessas, nem
filhos que nos convidem para almoços
de domingo – a minha ideia de família
resume-se a um retrato velho preso numa
gaveta; e do amor possível sei tão-só

o que li nos romances que nos salvaram
da desordem quando o meu tempo
andava de ferida em cicatriz. Mas guardo
ainda muitos por estrear para essa estante

que ergueste no corredor como uma casa
nova. E trago portas abertas no coração:



se ainda não sabias, és muito bem-vindo.


 Maria do Rosário Pedreira, in Poesia Reunida, Quetzal poesia, 2012, 1ª ed., p. 239

2 de julho de 2015

Muda de vida ou muda de poema

Ilustração de Dinara Mirtalipova
Um poema não é uma coisa que se coloca sobre o teu dia como um condimento sobre o teu almoço.
A vida de uma pessoa não tem material semelhante a nada que conheças. Existir é feito de peças impossíveis de copiar.
E a poesia não entra nesse material único - a vida de uma pessoa - como o avião no ar ou o acidente do avião na terra dura. Um poema não é manso nem meigo, não é mau nem ilegal.
Os homens não se medem pelos poemas que leram, mas talvez fosse melhor.
O que é a fita métrica comparada com algo intenso?
Há poemas que explicam trinta graus de uma vida e poemas que são um ofício de demolição completa: o edifício é trocado por outro, como se um edifício fosse uma camisa.  
Muda de vida ou, claro, muda de poema.

Gonçalo M. Tavares, in A Perna Esquerda de Paris

1 de julho de 2015

Recette pour faire le bleu



Van Gogh

 
Si tu veux faire du bleu,

prends un morceau de ciel et mets-le dans une grande marmite,

que tu puisses porter au feu de l'horizon;

puis mélange-le avec un reste du rouge

de l'aube, jusqu'à ce qu'il ait fondu;

verse le tout dans une bassine bien propre,

pour qu'il ne reste rien des impuretés de l'après-midi.

Pour finir, tamise un reste d'or du sable

de midi, jusqu'à ce que la couleur attache au fond métallique.

Si tu veux, pour que les couleurs ne passent pas

avec le temps, jette dans le liquide un noyau de pêche brûlé.

Tu le verras fondre, sans laisser la moindre trace comme si

tu ne l'y avais mis; et le noir de cendre ne laissera pas même un reste d'ocre

sur la surface dorée. Tu pourras, alors, porter la couleur

à hauteur des yeux, et la comparer avec le bleu authentique.

Les deux couleurs te paraîtront semblables, sans qu'il

te soit possible de les distinguer l'une de l'autre.

Voilà comment j'ai procédé - moi, Abraham ben Juda Ibn Haïm,

enlumineur de Loulé - et comment j'ai laissé la recette à qui voudrait,

un jour, imiter le ciel.

Nuno, JUDICE, inédit, traduction faite par les élèves du séminaire de

Michèle Gindicelli à l'université de Lyon