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31 de maio de 2015

Livro de água

Claude Monet, Nenúfares

Fecho as páginas da noite. E
um livro de luz fica-me nas mãos,
queimando-me os dedos e os olhos
com o seu quente fulgor.

Ponho esse livro numa estante
lacustre. As suas folhas cobrem rãs
e nenúfares; e a música da água
inunda-o, apagando o seu fogo.

Ninguém sabe o que está nesse
livro; que obscuras frases o enchem
de inquietação; que luminosas
conclusões o libertam de sombra.

Ilustração de Ančka Gošnik Godec

Busco o enigma do seu título
- exíguo retrato de um rosto
passado, em cuo rasto me perco,
engano de rumo nas entranhas

do nome.

                
                                   Nuno Júdice, in O fruto da gramática, D. Quixote, 2015, 2ª ed., p. 91


29 de maio de 2015

Receita poética

            
Ilustração de Gurbuz Dogan Eksioglu


Desfaçam uma batata, depois de bem
cozida, num prato de água quente. Não ponham
sal, que faz mal à saúde, nem azeite, que
está caro. Partam a côdea aos pedaços e
deitem-na no prato. Se houver ervas à volta,
nem que sejam urtigas, também servem
para dar sabor. Se não houver, pensem
nelas, e juntem-lhe a memória de uma rodela
de chouriço. Mas não muito, porque até
a memória está pela hora da morte. Depois,
soprem na sopa: não vale a pena comê-la
muito quente, o sabor perde-se no queimado
da língua. Comam as côdeas de pão com
tempo e proveito: é pão que já tem uns
dias, e que deveria ter sido lançado
aos pombos, mas os pombos já foram
comidos por quem se apressou a
apanhá-los. E depois do pão, passem
ao caldo: e comam devagarinho, mesmo
que já esteja frio. E quando acabarem,
consolem-se com um único
pensamento: amanhã pode
não haver mais!

Nuno Júdice,"Sopa de pedra (variante)" in O fruto da gramática, D. Quixote, 2015, 2ª ed., p. 40

25 de maio de 2015

Arte(s) poética(s)

Ilustração de Bella Sinclair


em boa verdade houve tempo em que tive uma
                                           ou duas artes poéticas,
agora não tenho nada:
sento-me, abro um caderno, pego numa esferográfica
                                           e traço meia dúzia de linhas:
às vezes apenas duas ou três linhas;
outras, vinte ou trinta:
houve momentos em que fui apanhado neste jogo e cheguei
                          a encher umas quantas páginas do caderno
aconteceu também por vezes que o papel pareceu
                                                                    estremecer,
mas o mundo, não: nunca senti que o mundo estremecesse
                                              sob as minhas palavras escritas,
o que já senti, e é de facto um pouco estranho, foi isto:
enquanto escrevia, o mundo parecia deslocar-se,
e quando eu chegava ao fim das linhas escritas,
sabia que estava tudo feito,
sentia que deveria morrer
mas, como se vê, nunca o mais simples atingiu em mim a
                                                        sua própria profundidade


Herberto Helder, in Poemas Canhotos, Porto Editora, 2015, pp. 18-19

24 de maio de 2015

Sustentar o espírito

Ilustração de Jing Jing Tsong

Os acontecimentos são ondas que ameaçam o espírito mas também o sustentam.

Hugo von Hofmannsthal, in Livro dos amigos, Assírio&Alvim, 2002, p. 73

23 de maio de 2015

Cinco destinos

Ilustração de 度薇年 

Cinco destinos guiam o homem: a sua natureza espiritual, o seu corpo, o seu povo, a sua pátria, a língua: elevar-se acima dos cinco é atingir a condição divina.


  Hugo von Hofmannsthal, in Livro dos amigos, Assírio&Alvim, 2002, p.61

22 de maio de 2015

Saber é pouco


Ilustração de 孟楠楠


Saber é pouco; 

saber na relação exacta é muito, 

saber no ponto exacto é tudo.


                         Hugo von Hofmannsthal, in Livro dos amigos, Assírio&Alvim, 2002, p. 64

21 de maio de 2015

Os melhores momentos da vida

Ilustração de Luís Alves


Os melhores momentos da vida são aqueles em que o indivíduo compreende a sua situação na vida; esse sentimento pode intensificar-se até ao mágico, e isso sem nada que seja egoísta, sem qualquer ambição. 


Hugo von Hofmannsthal, in Livro dos amigos, Assírio&Alvim, 2002, p. 72

20 de maio de 2015

O recheio da existência humana

Ilustração de Sernur Isik

De meros vazios se constrói o recheio da existência humana.


                                          Hugo von Hofmannsthal, in Livro dos amigos, Assírio&Alvim, 2002, p. 72



19 de maio de 2015

Sonho ou poesia?

Ilustração de Sernur Isik


Ao dizer algo de condensado sobre a realidade, aproximamo-nos já do sonho, ou antes, da poesia.

                               
                                                    Hugo von Hofmannsthal, in Livro dos amigos, Assírio&Alvim, 2002, p. 72


18 de maio de 2015

Criatividade

Ilustração de Cinta Vidal


Não é conhecer muitas coisas mas sim pôr muitas coisas em contacto umas com as outras que constitui um primeiro grau de criatividade.

Hugo von Hofmannsthal, in Livro dos amigos, Assírio&Alvim, 2002, p. 72

A amada nas altas montanhas


Ilustração de Bella Sinclair

a amada nas altas montanhas
o amador ao rés das águas




Ilustração de Chichi Huang



Herberto Helder, in Poemas canhotos, Porto Editora, 20015, p. 7


17 de maio de 2015

Onde esconder a profundeza?

Ilustração de Laimonas Smergelis

É preciso esconder a profundeza. Onde? Na superfície.


Hugo von Hofmannsthal, in Livro dos amigos, Assírio&Alvim, 2002, p. 74

14 de maio de 2015

Ser actor e ser famoso

Quando os mais novos vêm dizer-me: "Eu quero ser actor porque quero ser famoso", acho que há qualquer coisa que já está ali ao contrário de tudo e, portanto, aquela pessoa não me interessa nada. 

Ilustração de Dani Padrón

"Então por que é que queres ser actor?", podem perguntar vocês. Eu quero ser actor porque me permite brincar, quero dizer, permite-me a construção de um terreno de relação com os outros que tem regras diferentes, que eu invento naquela altura e com aquelas pessoas.


Luís Miguel Cintra, in Cinco conversas em Almada
O sentido dos mestres, 2015, 1ª ed., pp. 59-60

12 de maio de 2015

Casa da Cerca

Ilustração de Elena Odriozola

Julho chegou a Almada como quase sempre chega: soalheiro e promissor. Na Casa da Cerca, onde as tardes prometem mais do que noutro sítio qualquer, há quem deambule sozinho no pátio da entrada e quem espaireça em grupo no terraço das traseiras. Dali, a vista sobre Lisboa é desafogada e a brisa sopra com mais força. Os olhos encontram descanso no azul do Tejo e na luz da capital, há séculos elogiada. 


Ângela Paredlha, "Para uma vida mais verdadeira", in Luís Miguel Cintra, Cinco conversas em Almada
O sentido dos mestres, 2015, 1ª ed., p. 11

11 de maio de 2015

Dizes-me: tu és mais alguma coisa

Dizes-me: tu és mais alguma coisa
Que uma pedra ou uma planta.
Dizes-me: sentes, pensas e sabes
Que pensas e sentes.
Então as pedras escrevem versos?
Então as plantas têm ideias sobre o mundo?

Ilustrações de Dima Dmitriev


Sim: há diferença.
Mas não é a diferença que encontras;
Porque o ter consciência não me obriga a ter teorias sobre as coisas:
Só me obriga a ser consciente.




Se sou mais que uma pedra ou uma planta? Não sei.
Sou diferente. Não sei o que é mais ou menos.





Ter consciência é mais que ter cor?
Pode ser e pode não ser.
Sei que é diferente apenas.
Ninguém pode provar que é mais que só diferente.




Sei que a pedra é a real, e que a planta existe.
Sei isto porque elas existem.
Sei isto porque os meus sentidos mo mostram.
Sei que sou real também.
Sei isto porque os meus sentidos mo mostram.
Embora com menos clareza que me mostram a pedra e a planta.
Não sei mais nada.



Sim, escrevo versos, e a pedra não escreve versos.
Sim, faço ideias sobre o mundo, e a planta nenhumas.
Mas é que as pedras não são poetas, são pedras;
E as plantas são plantas só, e não pensadores.
Tanto posso dizer que sou superior a elas por isto,
Como que sou inferior.
Mas não digo isso: digo da pedra, «é uma pedra»,
Digo da planta, «é uma planta»,
Digo de mim «sou eu».
E não digo mais nada. Que mais há a dizer?




Alberto Caeiro, in Eu só penso no sol - Poesia de Alberto Caeiro, Alma azul, pp. 13-14

10 de maio de 2015

Muitas vezes Deus prefere


Ilustração de Aurélie Blanz


Muitas vezes Deus prefere

entrar em nossa casa

quando não estamos



Tolentino Mendonça, in A papoila e o monge, Assírio&Alvim, 2013, p. 40

6 de maio de 2015

Vasco Santana e O Fado do Estudante

Ilustração de Ana Moreira
A figura de Vasco Santana, apresentada na primeira pessoa como, de resto, todas as biografias da coleção Chamo-me... da Didáctica Editora, torna esta obra juvenil muito divertida, pois estabelece-se uma verdadeira empatia com o protagonista (narrador autodiegético), apesar de não existir exigência literária...

Porém, é fundamental para os mais jovens conhecerem o ídolo português de A Canção de Lisboa, O Pai Tirano, O Pátio das Cantigas, da comédia e do teatro portugueses em geral e inclui O Fado do Estudante, aqui reproduzido em várias interpretações musicais.






  

4 de maio de 2015

Eterna juventude

Ilustração de Maria Lavezzi

A voz envelhece muito devagar, é por isso que as estrelas da rádio se aposentam tão tarde.

                     
                                                                 Juan José Millás, in A mulher louca, Planeta, 2014, 1ª ed., p.75 

3 de maio de 2015

A mãe não gostou

Ilustração de Rozalek




Pus um chapéu em cima da flor por causa do sol.

A minha mãe não gostou.


Afonso Cruz, in O livro do ano,  Alfaguara, 2013

Declaração


               Ilustração de Rima Koussa


Eu, abaixo assinado, não sei o que
hei-de declarar.

Mas posso declarar que foi ontem que eu,
abaixo-assinado, declarei que era hoje que
iria declarar o que tinha de declarar.



Ilustração de Rima Koussa



















E declaro hoje que não sei o que declarar no dia 
de hoje enquanto amanhã não chega.

Eu abaixo-assinado declaro que
amanhã terei de declarar tudo o que tenho
de declarar.

Ontem teria declarado e subscrito
o que tinha de declarar.

E amanhã também iria declarar
todas as declarações do mundo se, quando
amanhã chegar, não descobrisse que amanhã
é hoje.

Por isso é que eu, abaixo-assinado,
declaro que não sei declarar hoje, que é o amanhã
de ontem, tudo o que tenho de declarar.

E eu, abaixo-assinado, declaro solenemente
por minha honra que só não declaro nada hoje porque
hoje é o amanhã de ontem,
e também não vou declarar nada amanhã porque
amanhã é o hoje em que irei deixar para depois
de amanhã o que tenho de declarar.


Ilustração de Rima Koussa













E cumpra-se esta declaração que vou datar
de amanhã, sabendo que só a poderei escrever
depois de amanhã, quando ontem for o amanhã
em que a vou adiar para ontem.


Nuno Júdice, in A Matéria do Poema, D. Quixote, 2008, 1ª ed., pp. 49-50

2 de maio de 2015

Frases mentirosas?

- Você é escritor, verdade?
- Sim - diz Millás intimidado.

- Saberia então dizer-me por que a frase "sou uma frase incorrecta" é correcta, enquanto "sou um frase correcto" é incorrecta?

Ilustração de Angela Marchetti
(...)
- Bom, "sou uma frase incorrecta" é correcta, formalmente falando, porque todos os seus elementos concordam. Outra coisa é que minta acerca de si mesma. Em "sou um frase correcto", ao contrário, há problemas de concordância. "Um" deveria ser "uma" e "correcto" deveria ser "correcta".

- Mas também mente - diz Julia.
- Também mente - aceita Millás.


                                          Juan José Millás, in A mulher louca, Planeta, 2014, 1ª ed., pp. 82-83