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15 de março de 2013

Alberto Caeiro

Ilustração de Afonso Cruz

Pus em Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática.

Fernando Pessoa



Era a voz da terra que é tudo e ninguém.

Álvaro de Campos



A vida de Caeiro não pode narrar-se, pois que não há nada que narrar. Seus poemas são o que houve nele de vida. Em tudo o mais não houve incidentes nem há história.

Ricardo Reis



Há metafísica bastante em não pensar em nada


Ilustração de Lombardini Marco

Ilustração de Virpi Pekkalan


Há metafísica bastante em não pensar em nada. 

O que penso eu do mundo? 
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que ideia tenho eu das coisas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos 
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das coisas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas coisas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.
Ilustração de Joan Louis
Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?

"Constituição íntima das coisas"...
"Sentido íntimo do Universo"...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em coisas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

Pensar no sentido íntimo das coisas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.
O único sentido íntimo das coisas 
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as coisas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e o sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos. 

Ilustração de Victoria Kirdy


Mas se Deus é as árvores e as flores 
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol. 

Ilustração de Ingrid Mann-Willis

E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.

Alberto Caeiro, "Poema quinto" in O Guardador de Rebanhos

Panteísmo


Ilustração de Asako Eguchi

Os Antigos viam Deus por detrás de cada erva, cada pedra, cada nuvem, cada criança que nascia. Tudo era apenas visão e voz, outra voz: a Natureza falava. O vento que passava nas folhas das árvores, a espuma do mar, o silêncio, o aroma...tudo era rasto da Sua presença. E existiam rituais que introduziam o mito na realidade e o tornavam parte da vivência diária. A arte era o espelho dessa íntima relação, era o produto do seu encantamento, era a testemunha e o motor dessa magia. "Um homem é um deus mortal, um deus é um homem imortal", disse Heraclito. Como se costuma explicar às crianças, os deuses fizeram os homens e os homens fizeram os deuses.

Rui Chafes, "O perfume das buganvílias 17" , in Entre o céu e a terra, Documenta, 2012