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31 de maio de 2013

As músicas do verso

Ilustração de Eva Vázquez

ele que tinha ouvido absoluto para as músicas sumptuosas     
                                                                         do verso livre  
ouvia a cada nó de sílaba
um silêncio de morte

Herberto Helder, in Servidões, Assírio & Alvim

29 de maio de 2013

nada pode ser mais complexo que um poema

Ilustração de Marten Tonnis

nada pode ser mais complexo que um poema,
organismo superlativo absoluto vivo,
apenas com palavras,
apenas com palavras despropositadas,
movimentos milagrosos de míseras vogais e consoantes,
nada mais que isso,
música,
e o silêncio por ela fora


Herberto Helder (2013), in Servidões, Assírio & Alvim, p. 62

28 de maio de 2013

Conta-me um conto



Vídeo produzido a partir da recriação de um conto popular por alunos do Curso Profissional de Turismo da Escola Secundária Fernão Mendes Pinto, em Almada (2012-2013). A produção textual que originou este vídeo resulta do trabalho colaborativo da disciplina de Português com a Biblioteca Escolar, na promoção da leitura e da escrita criativa.

27 de maio de 2013

A água da paróquia

Em Santarcangelo ao poço da Paróquia já não vai beber ninguém. Era a água benta que deitavam na cabeça das crianças para as baptizar e lavava as mãos de quem as metia dentro da pia.

E entretanto continuavam a andar para baixo e para cima os baldes da gente que morava ali à volta.

Ilustração de Nicolas Gouny

Depois puxava-a para cima um camponês para regar as alcachofras, até que fecharam o poço com uma chapa e na borda puseram uma placa a dizer assim: «Cá de baixo a água da Paróquia olha para o alto».


Tonino Guerra, in O Livro das Igrejas Abandonadas

26 de maio de 2013

As folhas da cerejeira

A André Tarkovsky


Por cima de Casteldeci há uma igreja sem tecto e as paredes têm entre os braços uma cerejeira que cresceu no chão e cujos ramos tocam o céu.

Em Abril floresce e a brancura desliza da árvore até ao fundo do vale, depois nascem os frutos e comem-nos os melros e os pássaros bravos; entretanto as folhas ficam vermelhas e uma de cada vez caem ao chão.

Ilustração de Rudi Hurzlmeier

Se alguém assoma àquelas paredes com o desejo de pedir um milagre e há uma folha que cai nesse momento é sinal que de lá de cima terá uma resposta boa. 

Tarkovsky passou lá em Novembro e precisava de fazer um pedido grande, mas as folhas já tinham caído todas e serviam de cama a duas ovelhas que dormiam.

Tonino Guerra, in O Livro das igrejas abandonadas

25 de maio de 2013

Gritos corcundas


Decidi criar gritos dentro de mim. Abro a boca
e engulo todos os sons que consigo.
Ilustração de Robin Heighway-Bury

Depois, não os deixo sair.

Afonso Cruz, "5 de Agosto" in O livro do Ano



Tinha gritos fechados há tanto tempo no meu
peito que, quando os soltei, saíram corcundas.  

Afonso Cruz, "6 de Agosto" in O livro do Ano



Fui até às montanhas junto ao mar. Lá em cima,
abri a boca para soltar um grito que tinha
ficado esquecido.

                                              Afonso Cruz, "12 de Agosto" in O livro do Ano

23 de maio de 2013

Sempre gostei de gatos

Sempre gostei de gatos. Gosto de todos os animais, mas com os gatos tenho uma relação especial. 

Ilustração de Paulo Galindro
Há muitos anos, conheci um astrólogo chinês e, embora não creia nos que preveem o futuro, porque sei que cada pessoa é responsável pelo seu destino e cada destino está cheio de surpresas, aceitei que fizesse o meu mapa astral. Depois de me perguntar o local de nascimento, a hora e o dia, desenhou um estranho mapa cheio de símbolos e cálculos misteriosos, ficou meditativo durante algum tempo, e disse finalmente: "Numa das tuas vidas passadas foste um gato feliz, porque eras o gato de um mandarim".

Luis Sepúlveda, prefácio de História de um gato e de um rato que se tornaram amigos, Porto Editora

21 de maio de 2013

O que é a vida?

Ilustração de Gentiane Magnan

O poeta grego que comparou o homem às folhas que não duram,
quando o inverno lhes roubou a esperança de viver de acordo com
os seus desejos, não saiu esta tarde para o campo, nem viu o
corpo que se interpôs entre o sol e os arbustos, ofuscando
o céu com a sua brancura de nuvem primaveril. Perguntou,
no entanto, de que serve a vida, e para que serve a alegria,
se não existe, para além delas, o horizonte dourado do amor;
e afastou da sua frente o crepúsculo, dizendo que preferia
a madrugada, logo que o galo canta, para despertar com
o próprio dia. Esse poeta, que o pó dos séculos sepultou,
e não chegou a encontrar qualquer resposta para as suas
dúvidas, aconselhou os que o liam a que se divertissem,
antes que a morte os surpreendesse. E lembro-me, por
vezes, deste pedido, ao pensar que a memória de alguém
se pode limitar a uma pequena frase, nem que seja a mais
banal das sentenças, que nos vem à cabeça numa ou noutra
circunstância. Então, o poeta grego continua vivo; e esta
tarde, por trás dos arbustos, ouvi a sua voz no vento que
por instantes soprou, trazendo com a sua frescura o sentimento
que sobrevive a todas as estações de uma vida humana.

Nuno Júdice, in As Coisas Mais Simples,D. Quixote, 2ªed., p. 67

19 de maio de 2013

O dia a dia

Ilustração de Madalena Matoso

...le quotidien, c'est ce qu'il y a de plus difficile à partager.

Philippe DELERM, in Il avait plu tout le dimanche, ed. Mercure de France, col. Folio

18 de maio de 2013

Noite e dia

Ilustração de Kim Amate

E então a noite caiu, para que não se falasse
do cair da noite. A noite caiu tão fria como as
últimas noites que caíram, neste princípio de
Inverno, e ninguém pôs um colchão por baixo
dela para que a noite não se magoasse, ao cair.
A noite limitou-se a cair, e com ela caiu o céu
sem lua, com todas as estrelas do universo a
caírem com ela. Só os olhos não caíram, porque
para verem o céu e as estrelas que o enchiam
tiveram de se levantar. E foi preciso falar
do cair da noite para que os olhos tomassem
a direcção do céu, e descobrissem tudo o que
havia no céu sem lua. «Deixem cair a noite»,
disse alguém. E logo alguém pediu que o
dia se levantasse, como se uma coisa estivesse
ligada a outra. Então, o dia levantou-se da
noite que caiu; e a noite caiu sobre o dia
que se levantava, para que a sua queda fosse
amparada pelo colchão do dia, e as estrelas
tivessem onde pousar, à medida que caíam.

Nuno Júdice, in As coisas mais simples

16 de maio de 2013

Gramática: o verbo

Ilustração de Lena Ralston

Principal ou auxiliar, é o verbo que faz mover
o discurso, dando à existência a sua qualidade
activa, e transformando-a no ser idêntico
que reúne em cada sujeito e estado, sem
distinguir uma ideia de outra. Porém, a
conjugação dos tempos e modos multiplica
o que dizemos por nós, por vós e por eles,
desde o passado ao futuro; e no presente
em que o enunciamos, o verbo é ser o que
é, sem ter sido o que será, na definição
conjugada das pessoas que agem, sem
que o saibam, e das que sabem, sem agir.

Nuno Júdice, in A matéria do poema

15 de maio de 2013

Doença dos telemóveis

Almoçar ali, assim, é uma forma de descansar das longas horas de viagem, e é possível abstrair do cansaço aproveitando uma vista, que quando se está do lado de fora da janela, nos oferece a natureza, os pássaros, a igreja, o monte, dando uma sensação de paz que nos coloca num intervalo do mundo em que até apeteceria ficar para sempre se não houvesse, na mesa do lado, um telemóvel a tocar. 

Ilustração de Thalita Dol
"Até aqui isto chega", pensamos, como se alguém que vive no mundo contemporâneo pudesse ficar imune a essa doença da comunicação a todo o preço que nos impede cada vez mais de sair da realidade e da pressão do mundo e dos outros com quem não nos interessa conviver mas que, desse modo, têm acesso imediato à nossa privacidade.

                                                                                                 Nuno Júdice, in A Árvore dos Milagres, p. 84

14 de maio de 2013

Aguenta, aguenta...


Ilustração de Mariana Kalacheva


...tudo o que tinha uma utilidade possível o Homem metia em cima do burro, carregando-o até este parecer que não aguentava mais, mas aguentava, e se por acaso fazia o gesto de protestar, parando no início de alguma subida do caminho, o Homem pegava num pau e não descansava enquanto o burro não voltasse a andar, mesmo que o pêlo lhe ficasse em sangue.

Nuno Júdice, "O Homem e o Burro", in A Árvore dos Milagres, p. 27

13 de maio de 2013

Como quase todos os burros...

Ilustração de Cesar Samaniego

Era um burro que tinha um ar pacífico, como quase todos os burros...

Nuno Júdice, "O Homem e o Burro", in A Árvore dos Milagres, p. 27

12 de maio de 2013

Modus vivendi de um coronel


A pensão tinha um regime de pensão completa de que o coronel, como ele dizia, tinha assinatura, tal como se assina um camarote na ópera ou uma revista militar. Comia sempre o mesmo: carne ao almoço e peixe ao jantar. 




Na Pensão já sabiam o que ele queria; e não lhe perguntavam sequer, a não ser que houvesse alguma empregada nova, o que acontecia de vez em quando, e por isso só de vez em quando ele tinha de ensinar à nova empregada que não insistisse em mudar-lhe o regime. 




De resto, era também para isso que serviam os coronéis: para que nenhum regime mudasse. 

Ilustrações de Torigun

Tinha o hábito, além disso, de fazer bolas com o miolo do pão, e entretinha-se a jogá-las umas contra as outras enquanto a comida não chegava.

Nuno Júdice, "Pensão de Termas", in A Árvore dos Milagres, p. 11

11 de maio de 2013

Província



Ilustração de Anna Lisk


Uma tarde de província tinha, em si, todos os defeitos que vinham de ser província. Os habitantes quase se escondiam quando os forasteiros passavam; ou, quando muito, vinham espreitá-los da janela, ou pelo canto da esquina, e fugiam se eles lhes vinham fazer alguma pergunta. Não que não soubessem a resposta, ou que não compreendessem a língua de quem lhes falava, que era a mesma que eles falavam: o que não percebiam era que houvesse um mundo fora do mundo em que viviam, e por isso se assustavam ao perceberem que, para fora do mundo deles, afinal, ainda havia outro mundo.

Nuno Júdice, "Pensão de Termas", in A Árvore dos Milagres

10 de maio de 2013

O sentido do azul




Ilustrações de Vladimir Kryloff

Procuramos o sentido. Andamos às voltas. Por
vezes, aparece um significado, mas tudo é vago,
como se as palavras já não dissessem o que
dizem. Por exemplo: quero saber o que significa
este azul na parede. A casa está direita,
resistiu ao tempo; mas o azul aparece desbotado
pelo sol de verão, pela chuva do inverno,
pela humidade salgada das maresias. E o que
significa este azul não é o azul da cor de
uma parede, tão-só. Há quem veja nele
a passagem dos anos, a fragilidade da vida; 
mas há quem aponte os pedaços em que a cor
desapareceu, deixando à vista o reboco,
e se refira a um mundo em ruínas, ao que
não é possível recuperar. Mas o pintor
chega, encosta a escada à parede, dissolve
a cor no balde, e aproveita a semana sem
chuva para pôr tudo igual. Talvez o novo
azul não seja igual ao anterior; e quando
olho o azul do céu, e o comparo ao da parede,
é como se um fosse a sombra do outro. De
certo modo, o azul deste céu parece-me
mais artificial do que o azul da parede. Digo
Ilustração de Lucy Campbell
então que o homem aperfeiçoa a imagem
que a natureza nos dá, como se já não
fosse possível acreditar no céu. O
pintor, esse, foi-se embora. Depois, olho
para o alto: há nuvens aqui e ali, e alguns
pássaros pontuam-no, como insólitas
manchas no infinito. Faz ali falta um pintor
para tapar os buracos, e voltar a pôr tudo
igual. Mas onde está a escada para chegar
lá acima? E quantos baldes de tinta seriam
precisos? E fico à espera da noite, para
não ver o azul com as imperfeições do céu.


Nuno Júdice, in Fórmulas de uma luz inexplicável   



8 de maio de 2013

Literatura precisa-se


Ler, para mim, não é ler o best-seller. Ler a boa literatura será sempre uma coisa de uma minoria, aí não há grandes invenções.

Ilustração de Madalena Matoso


O que se vende é inútil, não traz nada, não acrescenta nada, essa leitura é vazia. O texto que vai ficar não se vê nas livrarias ou quando se vê é durante uma semana e desaparece. É uma situação catastrófica e por isso faz falta uma boa crítica literária.


Nuno Júdice, em entrevista a Ana Sousa Dias na Revista Ler, nº 123, abril 2013, pp.28-29

7 de maio de 2013

Sem pagar bilhete



Ilustração de James Fenner


Escrevo para viajar. Graças à escrita, viajo sem pagar bilhete.


Miguel Miranda, médico e escritor

Congresso Bibliotecando em Tomar 
3 de maio de 2013

6 de maio de 2013

Viajar

Ilustração de Alexander Sulimov
A experiência de viagem é também uma experiência de linguagem.

Carlos Reis, Professor Catedrático
Congresso Bibliotecando em Tomar 
3 de maio de 2013

5 de maio de 2013

Amor e paraíso

Ilustração de Alexander Sulimov


Todo o objecto amado é o centro de um paraíso.

 Novalis, in Fragmentos, Assírio & Alvim, col. Gato Maltês

Dia da mãe

Ilustração de Daniela Terrazzini

Tudo acontece em nós muito antes de ter acontecido.

Novalis, in Fragmentos, Assírio & Alvim

4 de maio de 2013

Luz


Ilustração de Roberto Weigand


A luz é o génio do fogo.

                        Novalis, in Fragmentos

2 de maio de 2013

Elementos da poesia

Ilustração de Alexander Sulimov





O corpo, a alma e o espírito são os elementos do mundo, como a epopeia, a lira e o drama são os da poesia.


                      Novalis, in Fragmentos, Assírio & Alvim

1 de maio de 2013

Natureza

Ilustração de Cassandra Rhodin

Podemos considerar a natureza como um corpo fechado, como uma árvore de que somos os botões em flor.

                                                                       Novalis, in Fragmentos, Assírio & Alvim, col. Gato Maltês