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14 de maio de 2012

Escrevo para ser


Ilustração de Ford Smith
Fecho o álbum, acendo um cigarro. Para lá da janela atinjo a linha azul do horizonte que se desvanece na tarde. Penso, penso. Não, não penso, procuro. Outra vez, outra vez. Não, não quero “saber”, sei já há tanto tempo…Mas nenhum saber conserva a força que estala no que é aparição. Porque o escrevo de novo? A verdade é que nada mais me importa. E todavia, um estranho absurdo me ameaça: quero saber, ter, e uma aparição não se tem, porque não seria aparecer, seria estar, seria petrificar-se. Queria que a evidência me ficasse fulminante, aguda, com a sua sufocação, e aí, na angústia, eu criasse a minha vida, a reformasse. Mas uma reforma, uma regulamentação é já do lado de fora. Quem é fiel a uma certeza e a pode ver quando lhe apetece? (…) Não escrevo para ninguém, talvez, talvez: e escreverei sequer para mim? O que me arrasta ao longo destas noites (…), o que me excita a escrever é o desejo de me esclarecer na posse disto que conto, o desejo de perseguir o alarme que me violentou e ver-me através dele e vê-lo de novo em mim, revelá-lo na própria posse, que é recuperá-lo pela evidência da arte. Escrevo para ser, escrevo para segurar nas minhas mãos inábeis o que fulgurou e morreu.
Fecho o álbum, acendo um cigarro. 

Vergílio Ferreira, Aparição, Ed. Bertrand, Cap. XVII