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31 de dezembro de 2012

A menina dos fósforos

Estava tanto frio! A neve não parava de cair e a noite aproximava-se. Aquela era a última noite de dezembro, véspera do dia de Ano Novo. Perdida no meio do frio intenso e da escuridão, uma pobre rapariguinha seguia pela rua fora, com a cabeça descoberta e os pés descalços. É certo que ao sair de casa trazia um par de chinelos, mas não duraram muito tempo, porque eram uns chinelos que já tinham pertencido à mãe, e ficavam-lhe tão grandes, que a menina os perdeu quando teve de atravessar a rua a correr para fugir de um trem. Um dos chinelos desapareceu no meio da neve, e o outro foi apanhado por um garoto que o levou, pensando fazer dele um berço para a irmã mais nova brincar.


Ilustrações de Serena Curmi
Por isso, a rapariguinha seguia com os pés descalços e já roxos de frio; levava no avental uma quantidade de fósforos, e estendia um maço deles a toda a gente que passava, apregoando: — Quem compra fósforos bons e baratos? — Mas o dia tinha-lhe corrido mal.






Hans Christian Andersen, A menina dos fósforos (adapt.) 

30 de dezembro de 2012

29 de dezembro de 2012

A trote

Ilustração de Joysuke Wong
E assim, mesmo quando saía do seu recanto para se aquecer num dia húmido, Toby trotava. Desenhando no lodo com os sapatos furados uma linha irregular de pegadas lamacentas; soprando e esfregando as mãos enregeladas, escassamente defendidas do frio cortante com umas luvas puídas de lã cinzenta, das que somente têm um dedo para o polegar - Toby, com os joelhos arqueados e a bengala debaixo do braço, lá seguia trotando. Ao sair para a estrada, a fim de olhar a torre onde os Carrilhões badalavam, Toby continuava a trotar.

Charles Dickens, "Os Carrilhões", in Contos de Natal

Granizo em festa

Ilustração de Irene Owens

...os dias de vento, geada, neve e talvez uma violenta bátega de granizo eram dias de festa para Toby Veck.


Charles Dickens, "Os Carrilhões", in Contos de Natal

27 de dezembro de 2012

Contemplação dos sinos

...Toby atribuía aos Sinos um carácter estranho e solene. Eram tão misteriosos, ouviam-se com tanta frequência sem jamais se verem, achavam-se suspensos lá tão no alto, tão distantes, tão cheios de melancolia que ele os contemplava com uma espécie de temor respeitoso.
 
 
Ilustração de Aki
Em resumo, os sinos ressoavam-lhe constantemente nos ouvidos e ocupavam-lhe o pensamento, mas sempre os tivera na melhor consideração.
 

Charles Dickens, "Os Carrilhões", in Contos de Natal

26 de dezembro de 2012

Carrilhões

Ilustração de Redgella Deviantart
 
 
No cimo  da torre duma velha igreja, muito além das luzes e rumores da cidade, muito aquém das nuvens flutuantes que a cobrem de sombra, a noite é agreste e tenebrosa. Pois era no cimo da torre duma velha igreja que moravam os Carrilhões de que vou falar.
 
 
Charles Dickens, "Os Carrilhões", in Contos de Natal 

25 de dezembro de 2012

Chove. É Dia de Natal.

Ilustração de Vanessa Lubach
Chove. É dia de Natal.
Lá para o Norte é melhor:
Há a neve que faz mal,
E o frio que ainda é pior.

E toda a gente é contente
Porque é dia de o ficar.
Chove no Natal presente.
Antes isso que nevar. 

 
Ilustração de Erwin Madrid

Pois apesar de ser esse
O Natal da convenção,
Quando o corpo me arrefece
Tenho o frio e Natal não.

Deixo sentir a quem quadra
E o Natal a quem o fez,
Pois se escrevo ainda outra quadra
Fico gelado dos pés. 


Fernando Pessoa

Tudo brilha


Ilustração de Christine Thouzeau

Tudo brilha, luminoso, esplêndido, deslumbrante; e a pequena caixa de música escondida entre as ricas oferendas que oferecem as travessas de laca (numerosas, sobre a mesa) salpica com a sua chuva musical a atmosfera de alegria e de luz.


Ilustração de Catherine Zarip





Eu desapareço. Entrem crianças.


Tesouras, depressa, se quiserem façam tilintar os guizos pendurados nos ramos: e que a decoração se renove noite após noite, até ao Dia de Ano Novo, até ao Dia de Reis.


Mallarmé, in 101 Noites de Natal, uma antologia literária

24 de dezembro de 2012

O Pai Natal

Autor desconhecido
Ilustração de Arnaud Peron

A minha mãe cantava-me também uma canção desse género na véspera de Natal; mas como isso só acontecia uma vez por ano, não me recordo dela. O que não me esqueci foi a crença absoluta que eu tinha na descida pela chaminé do pequeno Pai Natal, bom velhinho de barba branca, que, à meia-noite, vinha pôr no meu sapatinho uma prenda que eu aí encontraria ao acordar. Meia-noite! Essa hora fantástica que as crianças conhecem, e que lhes é revelada como o termo impossível da sua vigília! Como me esforçava por não adormecer antes da chegada do velhinho! Tinha muita vontade mas também muito medo de o ver: contudo, nunca podia ficar acordada até àquela hora e, no dia seguinte, o meu primeiro olhar ia para o meu sapatinho, junto à lareira. Que emoção me causava o envelope de papel branco, pois o Pai Natal era muito delicado e embrulhava sempre a sua oferenda muito cuidadosamente. Corria descalça para apoderar-me do meu tesouro. Nunca era um dom magnífico, pois não éramos ricos. Era um bolinho, uma laranja, ou muito simplesmente uma maçã vermelha. Mas parecia-me tão precioso que mal ousava comê-lo.

George Sand, in 101 Noites de Natal, uma antologia literária

23 de dezembro de 2012

Feliz Natal

Poema do Natal

Ilustração de Gapchinska



...para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte -
De repente nunca mais, esperaremos... 
Hoje a noite é jovem: da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

Vinicius de Moraes, in O operário em construção

22 de dezembro de 2012

Ternura

Ilustração de Sarolta Szulyovszky

 Dizei-me: quando pelo Natal visitais um presépio, não vos enternece aquela pobreza, aquela humildade, aquele desamparo?


Pe. António Vieira, in Sermão III - Maria Rosa Mística

21 de dezembro de 2012

Natal e não dezembro



Ilustração de Eva Vásquez
Entremos, apressados, friorentos,
numa gruta, no bojo de um navio,
num presépio, num prédio, num presídio
no prédio que amanhã for demolido...
entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos e depressa, em qualquer sítio,
porque esta noite chama-se Dezembro,
porque sofremos, porque temos frio.
Entremos, dois a dois: somos duzentos,
duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
a cave, a gruta, o sulco de uma nave...
entremos, despojados, mas entremos.
De mãos dadas talvez o fogo nasça,
talvez seja Natal e não Dezembro,
talvez universal a consoada.
David Mourão-Ferreira, in Cancioneiro de Natal

20 de dezembro de 2012

Espuma da tarde

Ilustração de Rafal Olbinski

 
A janelinha tinha sido feita para abrir sobre um quintal, demasiado fundo para um salto, mas onde havia um limoeiro. O limoeiro abriu os braços e disse-me vem. Não ouvi mais nada, pois nessa altura já eu lá estava de costas num regaço de folhas, puas e limões. O que me acontecia parecia uma carícia e nem doeu nem sangrou.

 
Lídia Jorge, "Espuma da tarde", in Marido e outros contos



19 de dezembro de 2012

Mulheres

Akzhana Abdalieva



Sem se saber porquê, a percentagem de mulheres belas, até uma certa idade, é superior à dos homens. Há as esguias como bambus, há as doces como se paradas, e há as curvas como estradas de montanha. Cada uma com o seu encanto. É só preciso olhar, nem é preciso descobrir. E depois há as feias. 

                                                                 
Lídia Jorge, "António", in Marido e outros contos, Dom Quixote

Nudez especial

Ilustração de Annette Mangseth

 As mulheres sentem uma nudez especial  na cabeça ensaboada.

Lídia Jorge, "António", in Marido e outros contos, Dom Quixote

16 de dezembro de 2012

Cozinha, metáfora de mobilidade

O antropólogo [Claude Lévi-Strauss] ensina-nos que a cozinha é metáfora da própria existência humana, pois distingue o homem, precisamente esta capacidade de viver na transformação, numa mobilidade que não é só geográfica.

Ilustração de Solenn Larnicol 
Ora a metáfora da cozinha fala da transformação como um benefício.


Tolentino Mendonça, "Pensar Deus a partir do cru e do cozido",
in Nenhum caminho será longo, Para uma teologia da amizade

 

15 de dezembro de 2012

Misturas de criatividade

Ilustração de Solenn Larnicol

A cozinha é o lugar da instabilidade, da procura, da incerteza, das misturas inesperadas, das soluções imprevistas, das receitas adaptadas. A cozinha é o lugar da criatividade e da recomposição. 

Tolentino Mendonça, "Pensar Deus a partir do cru e do cozido",
in Nenhum caminho será longo, Para uma teologia da amizade

13 de dezembro de 2012

Tristeza à esquina de

Ilustração de Olga Ionaytis
Alguém à esquina da tristeza. Vá lá saber-se porque é que um tipo acorda com uma frase assim na cabeça. Talvez queira dizer qualquer coisa, se é que uma frase alguma vez quer dizer o que quer que seja. Quem sabe se não serei  eu quem assim está? Não sei onde fica tal esquina, talvez seja algo que existe só por dentro. Ou talvez, ao fim e ao cabo, a vida seja mais ou menos isso: uma tristeza, à esquina de. Uma frase sem sentido. Ou o sentido a fazer-se frase. Ou o prazer da melancolia, porque a verdade é que se acorda com uma frase assim e logo os violinos começam a tocar na memória...

Manuel Alegre, "City square" in O Quadrado, D. Quixote 

12 de dezembro de 2012

O regresso

Ilustração de Kai Pannen



Como quem, vindo de países distantes fora de
si, chega finalmente aonde sempre esteve
e encontra tudo no seu lugar,
o passado no passado, o presente no presente,
assim chega o viajante à tardia idade
em que se confundem ele e o caminho.

Entra então pela primeira vez na sua casa
e deita-se pela primeira vez na sua cama.
Para trás ficaram portos, ilhas, lembranças,
cidades, estações do ano.
E come agora por fim um pão primeiro
sem o sabor de palavras estrangeiras na boca.


  Manuel António Pina in Como se desenha uma casa

A frase

Uma tristeza canta debaixo de água. Uma tristeza azul, uma tristeza negra. Uma tristeza canta debaixo de água.

Ilustração de Lucile Gomez

Esta é a frase. Eu sou a frase em busca de uma história. Não digo de autor porque estou na cabeça dele sem ele saber porquê.


Manuel Alegre, in O Quadrado, D. Quixote 

10 de dezembro de 2012

Cansada, mas feliz

Ao chegar a Calcutá entrei em Motijhil, um dos bairros mais pobres da cidade. Não levava dinheiro nem tinha para onde ir, mas confiava que Deus me ajudaria. A primeira coisa que fiz foi montar uma escola na rua, num espaço entre barracas. A lama servia-nos de quadro preto. Ia traçando nele as letras do alfabeto bengali para ensinar as crianças a ler e a escrever.

Ilustração de Deirdre Gill

Elas sentavam-se no chão à minha volta, pois não tínhamos nem cadeiras nem mesas...nem nada! Bom, na verdade, tínhamos muito: as crianças tinham um interesse enorme em aprender e eu tinha muita vontade de as ensinar.


Ilustração de Cristina Fuentes
Aquelas que vinham sujas eram lavadas numa tina. Cada dia tinha mais alunos. E depois das aulas ia visitar os doentes.

Carmen Gil, in Teresa de Calcutá, il. Mercè Galí, Didáctica Editora, col. Chamo-me...

Direitos humanos



Ilustração de Joan Louis

Descobri que, como pessoa e como indiano, não tinha quaisquer direitos, ou melhor, descobri que não tinha quaisquer direitos como pessoa porque era indiano.
 Mahatma Gandhi

A árvore de Natal

Ilustração de Eva Melhuish





Joana tinha nove anos e já tinha visto nove vezes a árvore de Natal. Mas era sempre como se fosse a primeira vez.



Sophia de Mello Breyner Andresen, in A Noite de Natal

9 de dezembro de 2012

Conversa no presépio

Da árvore nascia um brilhar maravilhoso que pousava sobre todas as coisas. Era como se o brilho de uma estrela se tivesse aproximado da Terra. Era o Natal. E por isso uma árvore se cobria de luzes e os seus ramos se carregavam de extraordinários frutos em memória da alegria que, numa noite muito antiga, se tinha espalhado sobre a Terra.
Ilustração de David Crispin

E no presépio as figuras de barro, o Menino, a Virgem, São José, a vaca e o burro, pareciam continuar uma doce conversa que jamais tinha sido interrompida. Era uma conversa que se via e não se ouvia.
Sophia de Mello Breyner Andresen, in A Noite de Natal

O frio brilhava

As velas estavam acesas e a sua luz atravessava o cristal. Em cima da mesa havia coisas maravilhosas e extraordinárias: bolas de vidro, pinhas douradas e aquela planta que tem folhas com picos e bolas encarnadas. Era uma festa.

Ilustração de Anna Koroleva
Era o Natal.

Então Joana foi ao jardim. Porque ela sabia que nas Noites de Natal as estrelas são diferentes.
Abriu a porta e desceu da escada da varanda. Estava muito frio mas o próprio frio brilhava.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in A Noite de Natal

8 de dezembro de 2012

A música das festas

Ilustração de Jessica Piqueras
Nos dias de festa, do fundo das sombras do interior do armário saíam os copos. Saíam claros, transparentes e brilhantes, tilintando no tabuleiro. E para Joana aquele barulho de cristal a tilintar era a música das festas.

Joana deu uma volta à roda da mesa. Os copos já lá estavam, tão frios e luminosos que mais pareciam vindos do interior de uma fonte de montanha do que do fundo de um armário.


Sophia de Mello Breyner Andresen, in A Noite de Natal



A linha musical do encantamento



Ilustração de Gaëlle Boissonnard
Nem um momento só podes perder
A linha musical do encantamento   


Sophia, in O Búzio de Cós e outros poemas