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31 de agosto de 2012

O sol o muro o mar

Ilustração de Brenda Montes
No quadrado aberto da janela o mar cintila coberto de
escamas e brilhos como na infância.
O mar ergue o seu radioso sorrir de estátua arcaica.
Toda a luz se azula.
Reconhecemos nossa inata  alegria: a evidência do lugar
sagrado.


Sophia de Mello Breyner Andresen, in Ilhas  

29 de agosto de 2012

Tanto de meu estado me acho incerto


Ilustração de Catrin Welz-Stein
Tanto de meu estado me acho incerto,
Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
Sem causa, juntamente choro e rio;
O mundo todo abarco e nada aperto.

É tudo quanto sinto um desconcerto;
Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
Agora espero, agora desconfio,
Agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao Céu voando;
Nua hora acho mil anos, e é de jeito
Que em mil anos não posso achar ua hora.

Se me pergunta alguém porque assim ando,
Respondo que não sei; porém suspeito
Que só porque vos vi, minha Senhora.

                               Luís de Camões

28 de agosto de 2012

A bailarina russa

Ilustração de Emzar Kiknavelidze
Uma bailarina russa que tinha setenta anos e ensinava dança pelas escolas, foi seguida por um jovem, seduzido por sua figura esguia e arrebatadora.
Para não ser alcançada, correu até casa e, ofegante, fechou-se no apartamento. A filha jovem interrogou-a sobre o sucedido.
«Uma coisa extraordinária», responde a velha mãe. «Um rapaz seguiu-me e eu não quis que descobrisse meu rosto para não o desiludir com a minha idade. Vê pela janela se ainda está
no passeio».
A filha foi à janela e, sobre a estrada, depara com um velho que olhava para cima.

         Tonino Guerra, in Histórias para uma noite de calmaria

27 de agosto de 2012

Sul

Ilustração de Simona Dimitri
Era por agosto, há muitos anos.
O cheiro da sombra
das oliveiras subia ao ar. Vista de baixo
aquela folhagem parecia um mar,
um mar de vidro,
quando o sol oblíquo lhe caía em cima.
Eram dois cães raivosos, eram duas
cobras enroscadas, eram dois rapazes
rolando pelo chão; lutavam,
mordiam-se, abraçavam-se.
Deviam amar-se muito, para se baterem
com tal ardor. Um sol verde
lambia agora a terra.
Eram muito novos, há muitos anos,
no pino do verão, debaixo de uma oliveira,
onde só as cigarras monotonamente
consentiam.


Eugénio de Andrade, in Os Lugares do Lume

26 de agosto de 2012

A figueira

Ilustração de Nerida de Jong
Este poema começa no verão,
os ramos da figueira a rasar
a terra convidam a estender-me
à sua sombra. Nela
me refugiava como num rio.
A mãe ralhava: A sombra
da figueira é maligna, dizia.
Eu não acreditava, bem sabia
como cintilavam maduros e abertos
seus frutos aos dentes matinais.
Ali esperei por essas coisas
reservadas aos sonhos. Uma flauta
longínqua tocava numa écloga
apenas lida. A poesia roçava-
-me o corpo desperto até ao osso,
procurava-me com tal evidência
que eu sofria por não poder dar-lhe
figura: pernas, braços, olhos, boca.
Mas naquele céu verde de agosto
apenas me roçava, e partia.



Eugénio de Andrade, in Os Lugares do Lume

24 de agosto de 2012

Texto para uso didáctico


Assim, o que um poeta
faz com as palavras, ao
tocá-las com os dedos,
não é só
Ilustração de Joysuke Wong
o que o músico faz com os sons   
ou o pintor com as cores.
As palavras,
cuja composição espessa cimenta
o cérebro e lhe dá peso,
não se reduzem às matérias visual
e acústica respectiva-
mente da cor e do som.
A queda desamparada
do sentido para dentro de um
pequeno espaço de escrita,
assim como a súbita relação
estabelecida entre esse facto
e a minha consciência dele, desde logo
ampliam o horizonte expressivo
do poema.
E se o raciocínio e o gesto, em parte,
o entram nele,
não quer isto dizer que uma (outra)
razão, talvez mais profunda,
o inspire e penetre.
É que ela não se manifesta
expressamente pois, pelo contrário,
só no seu aspecto oculto
e “longínquo” se revela
- imediatamente -
o Poético.       
Nuno Júdice

23 de agosto de 2012

Sobre a mudança

Ilustração de Limeunhee
Talvez se tivesse dito, ao vê-la, que nada
poderia destruir a sua beleza. Nem vénus a perdeu, quando
lhe partiram os braços, ou de quantas outras estátuas
não restaram senão fragmentos, e ainda é possível
sonhar o todo a partir da parte. Mas pouco importa o que
se diz: a beleza, apesar daquilo que o tempo fez
ao corpo, pertence-lhe, e basta um breve olhar,
o gesto que repete o movimento de outrora,
a suave inflexão de uma frase, para trazer de volta
tudo o que parecia desaparecido. Por isso,
quando me cruzo com as mulheres que parecem
perdidas, num cruzamento, à espera de poderem
passar para o outro lado, ou quando as vejo
numa indecisão de pedir alguma coisa ao empregado
que se aproxima, com a carteira ao colo,
apago as sombras que as rodeiam, e devolvo-lhes
a luz de uma longínqua adolescência, o brilho
de rostos em que o amor ainda vivia, e um sorriso
a nascer no canto dos lábios, dissipando
a amargura do presente.

Nuno Júdice, in Fórmulas de uma luz inexplicável

22 de agosto de 2012

Manual do viajante


Ilustração de Catherine Samuel
Deixe que o conduzam pela berma do passeio, sem
tirar os pés dessa faixa mais larga entre a calçada e o alcatrão.
Faça com que os carros se desviem, à sua passagem, e
não tire os olhos do chão, como se andasse à procura
de moedas. Sim, à direita fica o muro do jardim, a igreja
lá para trás, talvez seja uma catedral, com os seus vitrais.
Mais à frente pode estar um museu, mas não se
preocupe e ande sempre em frente, seguindo essa linha de
separação entre o passeio e a estrada. Por vezes, sentirá a sombra
de uma árvore rara, cujas folhas são únicas no país.
Talvez sinta o seu perfume que, dizem os botânicos, enfurece
as fêmeas e desperta os machos. Mas nem isso o deverá
desviar. À esquerda, uma bela paisagem: o rio a transformar-se
em mar. Que importa se o chão continua ao longo da estrada,
e já tem carros a apitar para que se desvie, agora que vai
sair da cidade. Mas o seu destino ainda está longe, e
quando a tarde começa a cair não sabe se o irá alcançar.
Se houvesse um banco, poderia sentar-se; e ali está um,
ao lado do caminho, mas passou por ele e nem o viu. É
possível, diria o vagabundo que o viu passar, que fosse
esse o seu destino. Sentar-se-ia ao seu lado, pedir-lhe-ia
lume para o cigarro, sem se lembrar que há muito deixou
de fumar, e falar-lhe-ia na sua língua, que ele não
percebe, revelando o que há muito procura, enquanto a noite
cai e o caminho de volta se fecha.   

Nuno Júdice, in Fórmulas de uma luz inexplicável



21 de agosto de 2012

Almoço cosmopolita


Almocei, num país da américa do sul,
ao lado de um casal a falar francês;
todas as paredes tinham uma risca azul
e os clientes sentavam-se, um de cada vez.

Sabendo a língua deles, não precisei de tradutor
para saber o que diziam, alto para que eu ouvisse:
ela estava ali por acaso, ele era doutor,
sei que se amavam, pelo menos foi ela que o disse.
 
Ilustração de Mariana Kalacheva
Não me lembro já o que comi nesse almoço,
talvez não tivesse fome, e a conversa distraía-me.
O que eles diziam caía em mim como num poço,
e o seu silêncio, quando me olhavam, entristecia-me.

E hoje, quando almoço, bem a norte,
ninguém ao meu lado fala estrangeiro.
Pode ser que isto seja uma sorte,
ou será apenas um acaso passageiro.

Gosto destas histórias que acabam mal,
comigo a sair do restaurante, sozinho.
Então tenho a certeza de estar em portugal,
e depois do café, apetece-me um copo de vinho.


Nuno Júdice, in Fórmulas de uma luz inexplicável

20 de agosto de 2012

Descobrimento

Ilustração de Vladimir Olenberg

Saudavam com alvoroço as coisas
Novas
O mundo parecia criado nessa mesma
Manhã

Sophia de Mello Breyner Andresen, in Ilhas

19 de agosto de 2012

A pressão dos mercados



Ilustração de Paulo Galindro

Emprestem-me as palavras do poema; ou dêem-me
sílabas ao desbarato, para que as ponha a render 
no mercado. Mas sobem-me a cotação da metáfora,
para que me limite a imagens simples, as mais
baratas, as que ninguém quer: uma flor? Um perfume
do campo? Aquelas ondas que rebentam, umas
atrás das outras, sem pedir juros a quem as vê?


É que as palavras estão caras. Folheio dicionários
em busca de palavras pequenas, as que custem
menos a pagar, para que não exijam reembolsos
se as meter, ao desbarato, no fim do verso. O
problema é que as rimas me irão custar o dobro,
e por muito que corra os mercados o que me
propõem está acima das minhas posses, sem recobro.

E quando me vierem pedir o que tenho de pagar,
a quantos por cento o terei de dar? Abro a carteira,
esvazio os bolsos, vou às contas, e tudo vazio: símbolos,
a zero; alegorias, esgotadas; metáforas, nem uma.
A quem recorrer? Que fundo de emergência poética
me irá salvar? Então, no fim, resta-me uma sílaba - o ar -
ao menos com ela ninguém me impedirá de respirar.


Nuno Júdice, in Fórmulas de uma luz inexplicável

18 de agosto de 2012

Dança


Quero gritar ao vento que sufoco nesta inércia das cidades solitárias
onde o outro se enrola em si próprio e se esquece de si e do mundo


Quero subir às estrelas qual pássaro vadio explorando a liberdade
em rotas nunca sonhadas mas doces e ternas
como a descoberta de um segredo que nos (in)quieta e nos renova por dentro

 
 
Ilustração de Danguole Jokubaitiene

Quero ultrapassar-me a mim mesma dançando / voando
num lugar sem tempo e sem espaço onde me reconheço
 e me reencontro com o indizível
 ouvindo músicas ainda por compor e sentir

Quero tocar os outros como quem se redescobre e sabe
 como os poetas e os anjos que só assim será possível alcançar a plenitude

Marina Baltar, 2009

Receita para fazer o azul


Ilustração de Irena Shklover

Se quiseres fazer azul,
pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande,
que possas levar ao lume do horizonte;
depois mexe o azul com um resto de vermelho
da madrugada, até que ele se desfaça;
despeja tudo num bacio bem limpo,
para que nada reste das impurezas da tarde.
Por fim, peneira um resto de ouro da areia
do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal.
Se quiseres, para que as cores se não desprendam
com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado.
Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez
ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre
na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor
até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico.
Ambas as cores te parecerão semelhantes, sem que
possas distinguir entre uma e outra.
Assim o fiz – eu, Abraão ben Judá Ibn Haim,
iluminador de Loulé – e deixei a receita a quem quiser,
algum dia, imitar o céu.
Nuno Júdice

17 de agosto de 2012

Pelo sonho é que vamos


Ilustração de Danguole Jokubaitiene

Pelo sonho é que vamos,
comovidos e mudos.

Chegamos? Não chegamos?

Haja ou não haja frutos,
pelo sonho é que vamos.
Basta a fé no que temos,
basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria
ao que desconhecemos
e ao que é do dia-a-dia.

Chegamos? Não chegamos?

─ Partimos. Vamos. Somos.
Sebastião da Gama

16 de agosto de 2012

O sonho / voo do poeta


Ilustração de Danguole Jokubaitiene

O verdadeiro poeta sonha acordado. Não é possuído pelo seu tema, mas domina-o. Caminha pelos bosques do Éden tão confiante como nas suas sendas nativas. Ascende ao empíreo e não se embriaga. Trilha a marga abrasadora sem esmorecer; alça voo, sem se perder, através de reinos do caos “e velha noite"…nunca perdendo por inteiro as rédeas da razão quando mais parece fazê-lo.


Charles Lamb (ensaísta), citado por Adam Philips, in Louco para não dar em louco (2005:59)

15 de agosto de 2012

Voar


…como Ícaro, o herói grego, também nós aspiramos por sair do nosso labirinto. Ícaro experimentou sair com umas asas de cera e penas fabricadas por Dédalo, seu pai. E nós? A história humana, a grande e a pequena história humana, não passa de um estaleiro imenso ao serviço da invenção de asas.


Ilustração de Kate Pugsley

Sim, é possível a cada um de nós erguer-se do peso das coisas, transcender-se, perfurar a cápsula de penumbra e desânimo que se abate sobre a vida, elevar-se, recolocar-se perante a linha límpida do horizonte.

14 de agosto de 2012

Nós


Ilustração de Kalle Becker


Não há-de voltar o verão em que ouvi
cair os ramos naquele bosque de fetos
e eucaliptos; nem o pássaro que por
um instante apagou o sol voltará a

cantar antes de se perder no horizonte.

Mas voltarei a sentir o que o teu
corpo me fez sentir quando um vento
abstracto nos envolveu de luz, e
depois a sombra caiu, de novo,

com o calor seco daquela tarde.
Ilustração de Victoria Kirdy

Mudam-se os tempos, é verdade,
mas não mudamos quando o tempo
corre por entre nós com a sua lenta
música, e num abraço o perdemos

para que o tempo corra sem tempo.

Assim, os nós que o tempo desata
com os seus dedos são os nós que
nos prendem, e com os dedos do verão
os fazemos atar-nos mais ainda,
soltos nós que nesse nó nos solta a voz.

 Nuno Júdice, in Fórmulas de uma luz inexplicável

12 de agosto de 2012

Vício de bibliotecário ou erro humano?


“Catalogamos, fechamos e estigmatizamos situações, fazemos pagar” a outros “as consequências da exclusão que temos cá dentro.”

Ilustração de Dragonfly, artista croata
Pedro Meca (1998)


 Pedro Meca vive no meio das ruas de Paris, conversando e acolhendo os sem-abrigo. Pensa que as mudanças não virão tanto pela conquista do poder, mas pela alteração de mentalidades. A exclusão, por exemplo, está na nossa cabeça, diz. E é preciso esconjurar as etiquetas com que estigmatizamos tanta gente…

António Marujo, in Deus vem a público, Entrevistas sobre a transcendência

Cuidar do livro

11 de agosto de 2012

Viagem

Ilustração de Ancka Gosnik Godec




Provavelmente já terá fechado os armários da biblioteca, as janelas, subido ao sótão, aproximado da arca, tê-la-á aberto para folhear o álbum de fotografias, reler a carta, terá parado numa linha, tenho medo, medo que os próprios lençóis nos denunciem, depois fechado tudo, terá passado pelo jardim, verificado com algum espanto que o rosto das estátuas envelhecera, à entrada do pátio demorar-se-á a olhar para o meio das silvas. E terá partido.



Eugénio de Andrade, in Memória doutro rio

10 de agosto de 2012

Um poema


Ilustração de Katya Dudnik
Não tenhas medo
Ouve
É um poema
Um misto de oração e de feitiço
Sem qualquer compromisso,
Ouve-o atentamente
De coração lavado
Poderás decorá-lo e rezá-lo
Ao deitar,
Ao levantar
Ou nas restantes horas de tristeza 
Na segura certeza
De que mal não te faz
E pode acontecer
Que te dê paz!

                                          Miguel Torga

8 de agosto de 2012

Números solidários

Ilustração de Gabriel Pacheco



Estou com os que somam e multiplicam
a solidariedade
e não com os que a subtraem e dividem

Blasillo


in Juan José Millás e Antonio Fraguas "Forges", Números pares, ímpares e idiotas

7 de agosto de 2012

Poética



Ilustração de Anna Emilia

 Estes quantos traços que se parecem com a sombra
(às mãos devemos também a solidão mais implacável)
talvez nem mereçam essa forma de lentidão: a leitura
escrevi-os num jardim onde patos grasnam ao frio
e folhas se despenham atrás do vento

 
 Sobre a terra sem nenhum rumor
um verso é sempre tão pouco
em redor do que se pode observar
tenho medo pois de repente
a tua respiração ficou demasiado perto
da essência instável, dissonante

E isso é tudo o que nos resta

Tolentino Mendonça

6 de agosto de 2012

Quando eu sonhava



Ilustração de Silvia Lugli


Quando eu sonhava, era assim
Que nos meus sonhos a via;
E era assim que me fugia,
Apenas eu despertava,
Essa imagem fugidia
Que nunca pude alcançar.
Agora, que estou desperto,
Agora a vejo fixar...
Para quê? - Quando era vaga,
Uma ideia, um pensamento,
Um raio de estrela incerto
No imenso firmamento,
Uma quimera, um vão sonho,
Eu sonhava - mas vivia:
Prazer não sabia o que era,
Mas dor, não na conhecia...
                                    Almeida Garrett, in Folhas Caídas

5 de agosto de 2012

Quase



Ilustração de Danguole Jokubaitiene
Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh' alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo...e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se enlaçou mas não voou...

Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...
Ilustração de Danguole Jokubaitiene

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Mário de Sá-Carneiro

4 de agosto de 2012

Quem como eu


Ilustração de Danguole Jokubaitiene


Quem como eu em silêncio tece

Bailados, jardins e harmonias?

Quem como eu se perde e se dispersa

Nas coisas e nos dias?


Sophia de Mello Breyner Andresen

Cheiro do verão

Quem me traz morangos não sabe
Bastin Marjolein
que também me traz
um punhado
desses tão delicados e carnais
frutos silvestres
que os garotos de Roma vendem
pelas ruas, sorrindo, ao fim da tarde.
Só eles me trazem juntos a sombra
dos bosques do verão
e o canto do rouxinol
na frescura da sua pele.


Eugénio de Andrade, in Rente ao dizer

2 de agosto de 2012

Do lado do verão

Ilustração de Liu Ye

Vinha do sul ou de um verso de Homero.
Como dormir, depois de ter ouvido
o mar o mar o mar na sua boca?

Eugénio de Andrade, in O outro nome da terra

1 de agosto de 2012

História de verão

Ilustração de Mariana Kalacheva


Uma abelha, dessas que dizem ser italianas, entrou pela janela, obstinou-se em escolher-me, pousa-me no ombro, descansa de seus trabalhos. Lisonjeado com aquela preferência, comecei a amá-la devagar, retendo a respiração, com receio de que não tardasse a dar pelo seu engano, que cedo viesse a descobrir que não era eu a haste de onde se avistam as dunas. Mas o seu olhar tranquilizava, era calma ondulação do trigo. Agora só uma interrogação perturbava a minha alegria - comigo, como é que faria o mel?



Eugénio de Andrade, in Memória doutro rio