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6 de maio de 2012

Poema à mãe


Ilustração de Sam Hyuen Kim
No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe

Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.

Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.
 

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha — queres ouvir-me? —
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;

ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

ainda oiço a tua voz:
       Era uma vez uma princesa
      no meio de um laranjal...

Mas — tu sabes — a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber,

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.       
Ilustração de Nichole Lillian


                                  Eugénio de Andrade, in Os Amantes Sem Dinheiro

2 comentários:

  1. É lindo e verdadeiro. Nem sempre conseguimos exteriorizar o que vai no coração.Ainda bem que há o facebook. Gostei muito deste poema e tenho pena de não existir alguns anos atrás. Obrigada, conta sempre comigo. Beijos

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    1. Obrigada, Mã. Os filhos, mesmo quando saem da moldura, gostam sempre dos pais (pai e mãe), mas têm de voar para serem felizes."Eu vou com as aves". Beijos

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