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27 de fevereiro de 2012

Perde-se com a idade um não sei quê


Perde-se com a idade um não sei quê
que era talvez sombra e sabor e até tristeza
e assim temos outra paz de inclinação 
em clareiras limpas tocadas de algum eco
melancólico e lúcido. E quase sem ilusão
entregamo-nos ao âmbito de uma paz
que é a medida do mundo quando nada
se nos oferece senão o habitar
Ilustrações de Sam Hyuen Kim
aquelas horas de um universo que
é no silêncio glória obscura e transparente
Assim nos inebriamos também da madurez
procurando a inocente incandescência
do tempo quando ilumina as clareiras
e é como se nada ainda fosse passado
na onda lenta que ascende sobre o peito
e que desperta um vago núcleo que inicia

António Ramos Rosa, in O Livro da Ignorância, 1988

Hino

Ilustração de Alexander Grishkevich
O poema serve para alimentarmos a cumplicidade.

O poema serve para nomearmos o indizível, para expressarmos o silêncio, para bebermos os dois do copo da beleza e da magnanimidade.

O poema serve para nos lermos e dizermos de nós.

O poema serve o sublime.


Maria Carla

26 de fevereiro de 2012

Arte poética


Ilustração de Dennis Wojkiewicz

Se o poema não serve para dar o nome às coisas
outro nome e ao seu silêncio outro silêncio,
se não serve para abrir o dia
em duas metades como dois dias resplandecentes
e para dizer o que cada um quer e precisa
ou o que a si mesmo nunca disse.

Se o poema não serve para que o amigo ou a amiga
entrem nele como numa ampla esplanada
e se sentem a conversar longamente com um copo de vinho na mão
sobre as raízes do tempo ou o sabor da coragem
ou como tarda a chegar o tempo frio.


Ilustração de Duy Huynh


Se o poema não serve para tirar o sono a um canalha
ou ajudar a dormir o inocente
se é inútil para o desejo e o assombro,
para a memória e para o esquecimento.


Se o poema não serve para tornar quem o lê
num fanático
que o poeta então se cale.

                                                                         António Ramos Rosa, in Sílex, 1980

Agora as palavras

Ilustração de Salvia
Obedecem-me agora muito menos,
As palavras. A propósito
de nada resmungam, não fazem
caso do que lhes digo,
não respeitam a minha idade.
Provavelmente fartaram-se de rédea,
Não me perdoam
a mão rigorosa, a indiferença
pelo fogo de artifício.
Eu gosto delas, nunca tive outra
paixão. E elas durante muitos anos
também gostaram de mim: dançavam
à minha roda quando as encontrava.

Eugénio de Andrade, in O Sal da Língua

25 de fevereiro de 2012

Para um amigo tenho sempre um relógio


Ilustração de Aki
Para um amigo tenho sempre um relógio
esquecido em qualquer fundo de algibeira.
Mas esse relógio não marca o tempo inútil.
São restos de tabaco e de ternura rápida.
É um arco-íris de sombra, quente e trémulo.
É um copo de vinho com o meu sangue e o sol.

António Ramos Rosa, in Viagem através duma Nebulosa, 1960

A festa do silêncio

Ilustração de Gabriela Herrera

Escuto na palavra a festa do silêncio.
Tudo está no seu sítio. As aparências apagaram-se.
As coisas vacilam tão próximas de si mesmas.
Concentram-se, dilatam-se as ondas silenciosas.
É o vazio ou o cimo? É um pomar de espuma.




Uma criança brinca nas dunas, o tempo acaricia,
o ar prolonga. A brancura é o caminho.
Surpresa e não supresa: a simples respiração.
Relações, variações, nada mais. Nada se cria.
Vamos e vimos. Algo inunda, incendeia, recomeça.

Ilustração de Alexander Grishkevich


Nada é inacessível no silêncio ou no poema.
É aqui a abóbada transparente, o vento principia.
No centro do dia há uma fonte de água clara.
Se digo árvore a árvore em mim respira.
Vivo na delícia nua da inocência aberta.



António Ramos Rosa, in Volante Verde

21 de fevereiro de 2012

Do conto à realidade

"Argine", de Julia Simeón, consubstancia o pensamento de Bachelard de que se sonha antes de se compreender. É a passagem do conto, do sonho à realidade. Um filme de animação muito terno.





20 de fevereiro de 2012

O ornitorrinco


Ilustração de Bobby Chiu & Kei Acedera
Umberto Eco, na obra Kant e o ornitorrinco, analisa o problema das categorias de interpretação a partir dos juízos teorizados pelo filósofo alemão, que se depara com "um animal que tem um pouco de toupeira, um pouco de lontra, um pouco de pato, um pouco de castor. É um "ornitorrinco", mas ele não o sabe".

É este o exemplo que Granieri (2006) dá, em Geração Blogue, ao explicar que a internet e os blogues em particular nos colocam perante "o problema do ornitorrinco", que nos obriga a "readaptar continuamente as nossas categorias de interpretação".

Ilustração de António João Santos
e João Rodrigues
A experiência de recém-bloguista, em Portefólio de Leituras, foi moldando também as minhas categorias de interpretação do mundo tecnológico. Várias ferramentas aqui têm tido expressão, ao longo de cerca de 3 meses e mais de 2000 cliques!

Ultrapassado o medo (quase pânico!) de manejar tanto inaudito artefacto tecnológico, tornei-me sua aliada. 

Na verdade, tentei responder a um repto. O desafio de partida - a que não podia escapar! - tornou-se um prazer quotidiano, quase um vício, na vontade de me superar e de ultrapassar os constrangimentos e desaires informáticos que sempre vão surgindo.


Ilustração de Sam Hyuen Kim

Deste abraço (ao blogue, ao Popplet, ao Slideshare, ao Facebook, à incorporação de vídeos, etc.) fica um rasto. Um rasto com chama de futuro.

O Portefólio de Leituras vai continuar, com os seus amáveis e fiéis seguidores e o recurso inestimável a Pinzellades al món, blogue de ilustradores de livros internacionais, que na sua omnipresença tem procurado criar um fio condutor ao longo deste diário digital sobre livros e leituras!

19 de fevereiro de 2012

A opulência rota


Ilustração de Jacqui Faye

Elegância necessita-se, a aparência é essencial e criar uma imagem credível, que fica bem, que impressiona, que tem impacto e nos faz passar por pessoas admiráveis, com dinheiro, bem falantes e bem posicionadas socialmente é o objetivo da farsa social em que nos envolvemos.


Ilustração de Carl Cneut




Em cada época, porém, ressurgem vozes que gritam; espreitam os bastidores da opulência visível e desvendam sótãos degradados; voltam do avesso os fatos dos fidalgos e descobrem os bolsos rotos; coscuvilham os dividendos dos milionários e encontram onzeneiros usurários, a viver à custa do povo, do seu suor e miséria.

Ilustração de Sonya Wimmer


O teatro vicentino, tal como as suas personagens-tipo, é universal e intemporal. O cómico serve a crítica social. A fazer rir, ridiculariza-se e moraliza-se a sociedade: a pelintrice, as conveniências, a preguiça apaixonada por um marido rico, a fidalguia com os sapatos rotos e tantos e tantos outros tipos sociais e psicológicos a saírem de baixo do guarda-roupa. 

Eis uma síntese esquemática da crítica vicentina. Qualquer transposição para a atualidade é um exercício de lucidez!


18 de fevereiro de 2012

Mestre Gil e o Carnaval



Carnaval, de Simona Valentino

Gil Vicente foi mestre e ímpar na crítica a partir do ridículo e do burlesco. Provocando o riso, criticava as práticas, os hábitos, a moral vigente, os usos e costumes: "ridendo castigat mores".

Ler ou reler Mestre Gil é torná-lo atual neste Carnaval. Os paralelismos podem surpreender-nos!...



14 de fevereiro de 2012

A verdade do amor

Ilustração de Lauraballa
Não conheço outra verdade nesta terra
tão certa como a que diz o amor,
e que no peito o coração encerra
quanto mais o faz bater o calor.

Nuno Júdice, Geometria Variável

O que é o amor

Ilustração de Jiri Borski

Pergunto-te o que é o amor? E tu
dizes-me que o amor é perguntar-se por ele, e é
a dúvida que entra nessa pergunta"

Nuno Júdice, Cartografia de Emoções

Medir a voz do amor

Ilustração de Beatrice Alemagna
Há dias e acontecimentos que despertam as palavras, num sopro anímico, ao encontro de realidades indizíveis, inexprimíveis como o amor.

Alguns ousam deixar-se encaminhar, suster pelo fulgor de um arrebatamento de paixão ou íntima e nobre expressão de amor. Escrevem, escrevinham, ditam o que o coração pressente e as palavras leem.

Poesia, porém, só nos lábios dos poetas... Só eles sabem medir a voz do amor...

Maria Carla Crespo

12 de fevereiro de 2012

TIC e Literatura Portuguesa

Como apresentar projetos pessoais de literatura? Como traduzir o gosto pela pesquisa, o prazer da procura, do processo e do resultado? Como promover engenho e arte, num processo construtivo, em portefólio?
Autopsicanálise, de Nigel Buchanan
Esta reflexão tem por base bibliografia na área das TIC, mas aplica-se sobretudo à prática pedagógica em  Literatura Portuguesa, disciplina de opção em escolas que promovem as humanidades. Este esquema é, pois, quase um exercício de autopsicanálise, realizado no Popplet.

11 de fevereiro de 2012

Cenário com os pés de fora

Neve, de Virginia Lee
Deitamo-nos com a cama por fazer.
Uma pilha de blusas cai. Chão de verão.
Amor à tardinha com a vida desarrumada,
as coisas a meio. Até o silêncio está desarrumado.
Gosto deste cenário.
Há nele uma verdade que nem mesmo sei.
O meu quarto antigo sempre em desalinho
com os livros no chão ao pé da cama. Sentir
que a vida não é uma coisa útil e a horas,
e tu menos ainda, sem dobra no lençol
e os pés de fora. Foi isto que quis
na minha vida. Sem buracos de ozono,
sem buracos de fome ou de balas
atravessando os lençóis do mundo.

 Rosa Alice Branco

9 de fevereiro de 2012

A janela

Biblioteca, de Mihay Bodo

Uma das janelas de Calvino, a com melhor vista para a rua, era tapada por duas cortinas que, no meio, quando se juntavam, podiam ser abotoadas. Uma das cortinas, a do lado direito, tinha botões e a outra, as respectivas casas.

Calvino, para espreitar por essa janela, tinha primeiro de desabotoar os sete botões, um a um. Depois sim, afastava com as mãos as cortinas e podia olhar, observar o mundo. No fim, depois de ver, puxava as cortinas para a frente da janela, e fechava cada um dos botões. Era uma janela de abotoar. (...)

Daquela janela o mundo não era igual.
Gonçalo M. Tavares, in O Senhor Calvino

4 de fevereiro de 2012

Para que poema e vida coincidam


Inverno, de Alexander Grishkevich
Use o poema para elaborar uma estratégia

de sobrevivência no mapa da sua vida. Recorra
aos dispositivos da imagem, sabendo que
ela lhe dará um acesso rápido aos recursos
da sua alma. Evite os atolamentos
da tristeza, e acenda a luz que lhe irá trazer
uma futura manhã quando o seu tempo
se estiver a esgotar. Se precisar de
substituir os sentimentos cansados
da existência, reinstale o desejo
no painel do corpo, e imprima os sentidos
em cada nova palavra. Não precisa
de dominar todos os requisitos do sistema:
limite-se a avançar pelo visor da memória,
procurando a ajuda que lhe permita sair
do bloqueio. Escolha uma superfície
plana: e deslize o seu olhar pelo
estuário da estrofe, para que ele empurre
a corrente das emoções até à foz. Verifique
então se todas as opções estão disponíveis: e
descubra a data e a hora em que o sonho
se converte em realidade, para que poema
e vida coincidam.

Nuno Júdice, in Guia de Conceitos Básicos